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Jornal Olho nu - edição N°113 - abril de 2010 - Ano X

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Tambaba

Por Anasha Vanessa*

 

Passei quinze dias em Tambaba, uma praia naturista na Paraíba. A beleza descomunal do lugar, com suas falésias gigantescas, ocupa o primeiro lugar da lista de motivos que tornaram a viagem inesquecível. A primeira vez que estive numa falésia deu vontade de chorar, rir, gritar, tamanha a sensação de grandeza! Logo em seguida, quando me chamaram a atenção para o que poderia, ou não, haver abaixo dos meus pés, fui tomada pela sensação de perigo. E assim seguiram-se os dias, com Tambaba me mostrando o quanto a vida é maravilhosa e perigosa,ao mesmo tempo.

 

Adoro o mar, mas quase sempre sinto receio. Dessa vez foi diferente. Seu mar intenso me recebeu de braços abertos e eu me joguei com vontade. Nunca me senti tão entregue! Me lembrei de um verão da infância quando passei férias com os primos no Guarujá. Eles, mais velhos, me encorajaram a ir mais fundo, mais fundo ainda... Fui, apesar do medo, porque me sentia protegida por eles. Foi aí que aprendi a me relacionar com as ondas. Senti essa menina em Tambaba comigo, protegida, indo mais fundo e mais alto, corajosamente.

 

Passar parte dos 15 dias completamente nua na frente de outras pessoas também ganha destaque. Foi um processo gradual, onde, dia a dia, eu ultrapassava um pouquinho a educação moralista que ainda vivemos e o meu próprio recato, claro. Logo percebi que eu seria a única mulher sozinha ali. As mulheres estão sempre acompanhadas e homens não podem entrar sozinhos ( com exceção dos sócios da associação naturista, o que achei muito estranho. Ou pode ou não pode!) Enfim, eu havia sonhado tanto em estar ali que encarei o desafio. Entrava de cabeça erguida e cumprimentava todo mundo tranquilamente.

 

Tambaba, como toda a nossa sociedade, é como uma cebola com várias camadas e níveis de realidade e consciência: a dos freqüentadores acidentais, a dos curiosos moralistas, a dos punheteiros escondidos na mata, a dos naturistas de verdade, a dos casais buscando sacanagem, a de quem vive do turismo ali... Cada um sintoniza no canal que achar melhor. Livre arbítrio na veia!

 

No início algumas situações me deram medo e tive vontade de recuar. Logo percebi que uma mulher sozinha estaria sujeita à isso em qualquer praia normal. E que estar sozinha é sempre um desafio. O lado bom (sigo acreditando que sempre há um lado bom em todas as experiências) foi que não fugi do “perigo”. Fiz questão de exercer o meu direito de estar ali nua e simplesmente recusei educadamente os convites que recebi. E me descobri mulher, de verdade.

 

Risquei um item da minha lista de “coisas que gostaria de fazer antes de morrer”: perder meus “calos“ - gíria naturista para as marcas de biquíni e sunga. Inenarrável o que senti quando me vi inteiramente morena. Mas foi só quando cheguei em casa que percebi porque aquilo me era tão importante: Minha menina está feliz por ter a mesma cor de pele do papai! A família do meu pai é morena, de descendência indígena. E eu tenho a cor de pele da minha mãe. Finalmente sou índia! (por mais alguns dias, pelo menos).

 

Quase risquei da lista também o item “ficar sobre uma prancha e surfar pelo menos um minuto”. Juro que quase aprendi, quase mesmo e com um professor extremamente estimulante: Bilú, um cara incrível de 55 anos, que tem problemas numa perna e é cego de um olho. Apesar das limitações, ele surfa todo santo dia como um ritual. ”É pra manter o menino acordado!”, ele dizia. Porém, além da habilidade física necessária eu teria que surfar nua. Aí o bicho pegou. Simplesmente não pude.

 

Já fui minha própria tirana, me obrigando, cega e compulsivamente, a transpor limites, qualquer um. No fundo, era o desejo de ir além, de ampliar-me, de liberdade, que sigo sentindo. No entanto, antes a coisa acontecia de um jeito tosco e grosseiro para comigo mesma. É claro que me torturei um pouquinho tentando achar um motivo para “aquela covardia”, iniciando assim um julgamento severo: Foi recato, moralismo! Vergonha! Medo de machucar o corpo! Medo do ridículo!? Covardia mesmo! Até que mudei de canal, ufa! E reencontrei "o conteúdo da minha concha", que é o significado de Tambaba. Quando soube, pus-me a divagar sobre seus/meus possíveis conteúdos, as pérolas... Mas Bilú disse logo: “Não é nada disso. Pros índios, a concha é a piriquita da mulher”. Vixi Maria, mais uma camada da cebola pra eu descascar!

 

Com o passar dos dias, já conhecia todos os personagens do lugar: o dono do único bar-pousada que há beira mar, dentro da área naturista (mas que não é naturista nem seus funcionários que ficam vestidos. Outra camada da cebola!), os funcionários da associação (que abordavam as pessoas que entravam de roupa solicitando sua retirada), a única vendedora ambulante da praia, que usava apenas um avental, e outras figuras moradoras daquela região. Esses tantos, fui conhecendo aos poucos, através das narrações daquela que se tornaria minha amiga e madrinha, mas que inicialmente foi minha guia espiriturística. Fizemos passeios incríveis sempre recheados de boa prosa.

 

Rosana é dessas nordestinas arretadas, com sotaque carregado, intenso, dramático e contagiante. E ótima contadora de histórias. A descrição das pessoas e acontecimentos, muito minuciosa, trazia à tona pequenas manias e detalhes, me fazendo viajar, como quando lemos um bom livro. Tive a honra de conhecer alguns dos personagens e foi delicioso. Gente é tudo de bom!

 

Essa é uma grande vantagem de se viajar sozinha: fazem-se muitos amigos. Uma companhia pode gerar segurança, acomodação e menos disponibilidade. Ao mesmo tempo, descobri um tempo só meu. E dispunha dele de um jeito muito próprio. Houve uma noite em que passei 3 horas contemplando o céu. Se eu tivesse companhia talvez fosse diferente porque um outro pressupõe acordos, combinados e etc. Houve um dia em que decidi tirar férias das férias e passei o dia ali, fazendo nada, que tudo era.

 

Na Paraíba, ouvi menos a minha voz. Andava muito sozinha observando as árvores, os bichos, as pessoas e ouvindo os sons da natureza, que eram também os meus. Senti a Paz e a Beleza, fora e dentro de mim e me senti maior, ou melhor, com mais espaço interno. Minhas audição e visão cresceram.

 

Quando cheguei à Brasília e entrei no meu apartamento, senti um aperto no peito. Sentei no sofá e pus-me a olhar para a janela, como quem olha de dentro de uma prisão, nostálgica e sôfrega. Graçasaosdeuses, mudei de canal e logo reparei na folhagem de um enorme fícus que fica em frente à minha janela. O vento batendo suave, as folhas se movendo como se dançassem... Pude ouvir vários tipos de pássaros cantarolando, olhei praquele azul lindo do céu... Ai, ai, é preciso saber perceber a Beleza em qualquer lugar!

 

Anasha (Mudei de nome! Batizei-me em Tambaba, mas essa é uma outra história...)

 

*Sobre Anasha Vanessa

 

Anasha Vanessa é atriz formada pelo Departamento Artes da UnB com especializações em Psicologia Junguiana e Arteterapia. Desde 1994 desenvolve a pesquisa “Umbigo de Eros” que investiga a criatividade como mediadora e potencializadora do processo de desenvolvimento interior do ser humano através das atividades: 1. Ateliê Expressivo para Mulheres (arteterapia em grupo focada no universo da mulher); 2. Ateliê Alquímico (terapia individual focada na criatividade e auto-conhecimento, utilizando especialmente, caixa de areia, escrita criativa e artes plásticas) e 3. Pesquisa e criação de espetáculos a partir de mitologia pessoal. Anasha é ainda membro fundadora do Instituto Arcana, ONG onde coordena o Programa Roda de Mulheres (www.arcana.org.br), cujos projetos e oficinas reúnem abordagens artísticas e terapêuticas em prol da saúde integral da mulher de baixa renda. Além disso, Anasha adora escrever. Para conhecer seus textos acesse o blog www.umbigodeeros.blogspot.com. Contatos: umbigodeeros@gmail.com 


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