Naturalmente - julho 2010
A madrugada fria me
surpreende insone olhando serenamente para um arranjo de flores de lótus
localizado no centro da mesa onde estão dispostos vários livros, que
tenho consultado enquanto escrevo meus textos. Penso recorrentemente
sobre os chamados mistérios do existir, as inquietações desta vida feita
de dúvidas... E J.C.Carrière, por exemplo, nos diz que a flor de lótus é
a própria imagem da existência, da vida; ela é o primeiro símbolo e, sem
ela, todo discurso seria impossível. Ela representa, inclusive, o
próprio Iluminado, ou sua essência, estando igualmente presente em toda
a velha Índia, destacando-se freqüentemente das águas turvas. Carrière
situa bem a sutileza natural.
Nesses dias agitados de
fim de Copa do Mundo, parece-me, mais do que nunca, oportuno e relevante
buscar transcender as águas turvas das paixões alucinadas, dos vários
ópios do povo, dos apegos ilusórios, da criatividade infecunda e da
algazarra idiota, do não-silêncio violento e até burro. Menos
mediocridade faz bem.
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Livro de
Thomas Merton
(Literatura
Distribuidora de livros) |
Sinto, no silêncio da
madrugada, que a paixão que, talvez, se deva procurar é a dos poetas,
românticos ou realistas, não importa muito, afinal. É inteligente
cultivar esse silêncio precioso da madrugada, que nos envolve sem nos
agredir. Esse silêncio nobre é como um bichinho em extinção e pede
atenção especial para não acabar. A propósito, encontro, junto de várias
folhas manuscritas por mim, um modesto livro de um poeta da paz chamado
Thomas Merton, monge trapista, um convite ao silêncio transcendente. Em
sua obra chamada “Diálogos com o Silêncio, Orações e Desenhos”, Merton
ilumina os caminhos do recolhimento. Como ressalta o editor Jonathan
Montaldo, Merton teve, como o comum dos humanos, uma ascendência marcada
pelo egoísmo, pela ganância e pela violência, mas conseguiu abrir uma
estrada vencendo inúmeras dificuldades, seguindo um caminho tradicional
de auto-abnegação, de generosidade e de não-violência, valorizando
sempre o fundamento de unidade e amor entre todos os seres vivos.
Anotemos, de passagem, que
o excessivo barulho das multidões alienadas é fator importante de
dissipação sem sentido. É mister, como queria Merton, um escutar no
silêncio, um dialogar com o nobre silêncio, buscando ser sábio
suficiente para entender que não sabemos bem aonde estamos indo... A
própria substância da vida pode ser melhor entendida e transformada em
um silêncio vivo e vigilante, certamente sem tagarelices descabidas.
Engolfado na simplicidade lúcida, o poeta Merton procurava a paz na
solidão: “Lá em cima, no céu do verão, observo o vôo silencioso de um
abutre e o dia passa em oração. Esta solidão confirma meu chamado à
solidão. Quanto mais penetro na solidão, mais a amo. Um dia ela me
possuirá inteiramente e ninguém mais me verá”...
Mas vale observar que
silêncio e solidão não são sinônimos de tristeza e de depressão. Pelo
contrário: o silêncio nobre é feito dos sussurros da vida. Agitação, por
exemplo, não quer dizer concretamente uma boa atividade. Acredito, pois,
que todos deveriam cultivar conscientemente a serenidade, a
não-violência e o silêncio inteligente. A flor de lótus preciosa, a
padma, lótus cor-de-rosa, como símbolo de vida e transcendência, pode
nos inspirar para uma efetiva melhor qualidade de vida, onde se insere
inteiramente a verdadeira prática naturista, plural, universal,
não-violenta, não-sectária, não-ideológica, despojada física e
psicologicamente.
Ser naturista não é,
enfatizemos, simplesmente tirar a roupa e sair por aí tagarelando,
misturando alhos e bugalhos, por falsa erudição, tentando teimosamente
confundir ciência e magia, sexualidade com pornografia, liberdade com
licenciosidade, naturismo com ideologia ou religião... A mãe natureza,
como afirmo documentarmente de longa data, não pede julgamentos, nem
acolhe subjetividades. A natureza nos mostra cabalmente, como afirmou C.
Darwin, que é através de uma série de lentas mutações, ao longo do
tempo, que se processa a evolução, em síntese, sem epifanias ou mágicas.
E naturismo é culto ao natural, corpo são e mente sã, numa reverência
nua à mãe-natureza. É só isso. É simples...
Busquemos, em silêncio, a
verdade feita de imperfeições, pois a natureza não é certinha,
comportadinha nem simétrica...
Em “O Globo”, 16/06/2010,
fala-se de uma “quase pelada de pelados junto ao Congresso”... Um grupo
de estudantes da Universidade de Brasília fez um protesto diferente,
tentando alertar sobre a alienação provocada pela velha Copa do Mundo (o
que é notoriamente verdade), ficando todos inteiramente nus... Mas
estranho mesmo é que o referido protesto pelado incomodou, de forma
especial, um grupinho aculturado de índios Guajajara, do Maranhão, terra
do velho Sarney... O tal “cacique”, chamado José Dias Lopes, nome nada
indígena, teria declarado o seguinte: “Achamos muito estranho isso. Na
nossa aldeia, não se vê mais índio pelado”...
É até possível, mas a
afirmação é triste, lamentável. Realmente, na aldeia do José Lopes não
só não se vê mais índio pelado; na aldeia dele, não há mais índios. O
José provavelmente não é branco civilizado, mas deixou de ser índio: é
um pária. A nudez dos índios, segundo Darcy Ribeiro, é natural e muito
digna! A nudez, do índio ou de qualquer bicho-homem, não pode ser vista
como algo insólito. A natureza nunca se preocupou em vestir ninguém ou
coisa alguma. Índio com nome português, cheio de roupas, de vícios e de
preconceitos, deixou de ser índio há muito tempo; perdeu o trem da
história. Que pena!...
Para procurar concluir
esse papo tranqüilo, quando falamos de silêncio e paz, e até dos
queridos irmãos índios, cito o que escrevi em “Corpos Nus, verdade
Natural”, págs. 256 e 257... Tupinambá quer dizer, segundo Torres,
“filho da terra”; o grande cacique Cunhambebe, filho da terra, não
conhecia o pudor fabricado pelos brancos (e até pelos falsos índios);
sua fala era serena, nunca feita de gritos. Cunhambebe era livre! E era
certamente um homem nu, natural e solto como a brisa da madrugada. Mas
pouca gente pode entender isso. Falta iniciação, falta sensibilidade,
falta despojamento. Alguns poucos até “gostam dos índios”, pois se
sentem atraídos pelo lado dito insólito de viver nu no meio do mato...
Mas é só isso. Fazem parte do “clube da extravagância”. Alguns deles até
se dizem naturistas, mas chamam de “nudismo” o ato de ficar nu na
janela...
É importante, uma vez
mais, salientar que tirar a roupa simplesmente, seja onde for, não
configura boa prática nudista-naturista. Só ficar nu não é nudismo, em
princípio. Chega de tolices e de falta de conhecimento
histórico-filosófico! A questão dos termos “nudismo” e “naturismo” já
está claramente e, notem bem, oficialmente esclarecida, não cabendo
definitivamente nenhum joguinho de palavras de falsa erudição. Obergfell,
dirigente conhecido da Federação Naturista Internacional, escreveu um
longo artigo prestigiado, que reproduzi na íntegra, no texto em inglês,
nas páginas do meu livro “Naturalmente – Um Perfil Documentado”,
afirmando sempre o seguinte: “Apenas o retorno às nossas raízes (desde
Ungewitter) irá assegurar a perenidade de um naturismo sereno”. No 29º
Congresso Internacional, de 2004, realizado na Croácia, ficou
oficialmente estabelecido que os termos “nudismo” e “naturismo” são
concretamente equivalentes e podem ser usados sem distinção, o que já
era históricamente conhecido e consagrado. Precisamos de conhecimento em
lugar de disparates.
Por tudo isso, creio que
está na hora, sobretudo, de pensar silenciosamente a respeito da mãe
natureza sempre livre, nua e amoral, e igualmente a respeito do
naturismo, que, afinal, deve ser simples, sem invencionices, somente
natural.
É tempo, aqui e agora, de combater os equívocos recorrentes de uma
minoria alienada, valorizando a conscientização de que não se pode (nem
se deve) adquirir efetivamente o status de naturista simplesmente por
ter visitado “uma colônia naturista” ou ter ficado sem roupas
eventualmente ou por questões profissionais... O Naturismo Brasileiro,
anotemos, desconhece qualquer “messias” ou “inventor”; o Naturismo
Brasileiro tem líderes e pioneiros, mas jamais “foi trazido por algum
profeta para o Brasil”... Disparate não é história! Prestigiemos, pois,
a historicidade, o estudo, o recolhimento, o conhecimento sereno e a
fraternidade nua. Silêncio nobre em lugar de tagarelice barata.
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