A
NAMORADA NATURISTA DE SYD BARRETT, O CRIADOR DO PINK FLOYD.
A um floydiano de nome Genecy.
Eu
estava tentando superar aqueles pesadelos que me perseguiam após a saída
da banda, o que nem mesmo eu desconfiava. Não esperava ter ido ao fundo
do poço sem som algum, sem letras, sem acordes, sem viagens ao meu
interior. Os caras não tinham o que inventar, uma estranha sintonia
desconectada, talvez pelo uso de certas substâncias que muito me
alegraram e que até hoje consomem meus sonhos mais apreciados. A
insistência de Roger e David, agora, seria para que eu entrasse naquele
estúdio e registrasse algo para a minha alma. Eles sabiam que o elefante
efervescente poderia ser domado para este circo da indústria de discos.
Neste período conheci Karinne. Ela era nudista, mas me corrigia sempre
quando a chamava assim, dizia que o certo era naturista, e que a nudez
no caso dela era um complemento perfeito para sua arte, no final de 1967
essencialmente colocada nos palcos e na feitura de livros artesanais de
poemas. Karinne adorava ficar nua, e em princípio achei aquilo meio que
um exibicionismo gratuito, sem um foco específico. Roger e David, quando
entravam em meu apartamento e a encontravam nua ficavam cabisbaixos, mas
não demorou muito para que se acostumassem com a nudez de karinne. Eu
ficava nu, mas só quando estávamos sós, e chegamos a fazer um ensaio
fotográfico juntos, este que vocês estão vendo ilustrando este relato.
Ficamos pouco tempo juntos, talvez em virtude de minhas iluminações, que
cegavam a todos, ou dos momentos de reclusão interior, quando ficava
incomunicável por longo tempo. Nos separamos depois que a prendi neste
recinto e passei a alimentá-la com biscoitos, e ficou Karinne nua com
seus biscoitos apetitosos. Ela reclamou e foi embora, para não voltar
mais. A nudez e a arte dela deixaram resquícios, porém.
Muito tempo depois cheguei a ver vários ensaios do Pink Floyd
utilizando-se da nudez de forma artística e dinâmica. Um bonito trabalho
é aquele das mulheres nuas com as costas pintadas na beira de uma
piscina, tendo como motivos algumas capas do Pink Floyd. O próprio Roger
usou uma capa com uma mulher nua pedindo carona,usando somente uma
mochila nas costas.
Karinne
é a co-responsável por estas obras, tenho a certeza, mesmo que o ego
inflado e Roger e David não admitam, Karinne está lá! O louco Syd não
esqueceu mesmo daquela naturista, as fotos um tanto desbotadas daquela
sessão memorável não me deixam mentir, Karinne era muito talentosa, além
de possuir uma sensibilidade para esta coisa de movimento do corpo.
No piso de taco e tecido aveludado daquele recinto esta menina-mulher
nua perpetuou sua arte. Digo isso, pois Roger e David tanto insistiram
que acabei por lançar (eles fizeram a parte burocrática com a
gravadora!) dois álbuns, “Barrett” e “Madcap Laught”. A capa do primeiro
tinha a pintura de uns insetos que matei com a bravura de um Dom Quixote
e no Louco que ri, o segundo, as fotos de Karinne nua foram incluídas no
encarte (a da capa só aparecia eu e um jarro). Karinne nua, sentada num
banco alto, um tamborete, no canto do aposento, como se estivesse
agüentando a parede para que não caísse sobre nós e nos esmagasse, e eu
de mendigo louco, descabelado, um hippie mesmo, um ser feito de
psicodelia tentando, com minha bicicleta, deixar uma limonada de bebê
para minha querida tia gigôlo. Coisa da vida, e da morte.
Eu falava de Karinne, aquela nudista que passeava pela casa e que não
lavava roupas. As dela não precisava, pois ficava nua o dia todo, e as
minhas porque ficavam podres mesmo, não fazia questão de que as lavasse.
Pedia a Karinne que esquecesse o fogão, a escova e o sabão em pó. Que
cuidasse só da arte, pois a vida é passageira, e a arte é um infinito
profundo, interplanetário, descomunal. Existia entre nós uma comunhão de
propósitos, Karinne nua com seus poemas e coreografias, Barrett com uma
música verdadeira, nua. Ao ver a natural nudez de Karinne imaginava em
meus sonhos artificiais aqueles índios das florestas selvagens,
inóspitas, prendendo Tarzã por usar aquela tanga ridícula. Índios nus
que usavam aqueles alteradores de consciência, de percepção, que usei e
abusei, tornando-me um diamante louco, como querem David e Roger.
Minha lapidação, porém, foi feita por algo que os índios nus não
conheciam, não foi o peiote, não foi a mescalina, não foi o yage, não
foram os cogumelos, não foi erva alguma, foi um composto criado em
laboratório por um certo Hoffmann. Louco, Sem Diamante. Foi como fiquei,
(L)ouco, (S)em (D)iamante, e o que seria pior, sem aquela agradável
nudez naturista de Karinne, minha companheira de quarto naqueles dias e
noites londrinos de eternas viagens ao redor de mim mesmo. Agora penso
no jarro, escuro, com aquelas flores claras, de um amarelo pálido, e
Karinne indo na outra direção de minha vida. Meu olhar interroga um
possível interlocutor, como se perguntasse a ele se nunca viu aquilo,
uma mulher nua e um jarro num meio de uma sala vazia.
Nua,
Karinne desponta da penumbra no recinto fechado, neste quadrado em que
me encontro, onde ratos imperam, onde o único livro é um grosso exemplar
do Ulisses, de James Joyce. David e Roger hoje estão muito ricos, Mason
não sei por onde anda ou o que faz, e o Richard daqui há pouco deve me
acompanhar, quando eu conseguir sair deste local, deste quarto
interminável. Coisas da vida, e da morte.
Karinne nua percorre minha mente, ela anda desenvolta, com muita calma e
elegância. Os gnomos do quarto acabaram por quebrar o jarro com suas
brincadeiras insanas, tempos depois. As flores do jarro não resistiram
por muito tempo e também murcharam, como secaram os meus neurônios. Só
restou em minha mente a nudez representativa da paz interior de Karinne,
e fico até hoje divagando se tudo ocorresse diferente, como outro.
Outrora. Talvez se eu ficasse com karinne, como um casal, por exemplo,
John e Yoko, não teria feito um disco com a capa de nós dois nus, dois
nus e um jarro de flores desbotadas. Quem o saberá?
O meu vertiginoso pensamento percorre os espaços vazios e amplos daquele
recinto, e sinto mais uma vez que Karinne passeia nua aqui, eu não estou
só. A nudez dela cheira a alfazema do campo, um perfume agradável, um
odor de pele como não se tem ao usar uma roupa, qualquer que seja a
vestimenta. Karinne, do alto de seu espírito completa e totalmente
naturista dizia que quem veste uma vestimenta veste a mentira, quem usa
vestimenta, a veste e mente. Um trocadilho que me deixa encucado até
hoje. A música poderia ser nua? Como alcançar um som que nos faça feliz,
sem usar nada além do som e de nosso corpo despido? Eu não consegui esta
façanha, e Karinne por causa deste vácuo na minha produção, não retornou
ao quarto dos biscoitos e do jarro escuro. Roger poderia me dar a
resposta, mas ele está muito ocupado contando seu dinheiro e fazendo
ópera na selva, na companhia daqueles índios nus, ou que ficavam nus.
David está fora de cogitação, está com uma tremenda barriga proeminente
e quase careca, e fisicamente ficou um tanto quanto parecido comigo,
perdeu sua força junto com suas madeixas que caíram pelo caminho
tortuoso do tempo e das intrigas e pelejas pelo potencial de uma marca,
de um nome de banda. Trivialidades.
Sem
a nudez de karinne confesso que fiquei meio perdido, foi como se
faltasse uma peça fundamental da roupa de minha mente, e eu chorei esta
ausência, a nua mulher menina que eu vi e senti, a menina mulher nua que
me fez acostumar com a naturalidade de um corpo nu, desta Eva desgarrada
do Éden, que fugiu de Deus e da serpente, e que deve estar em busca de
um raro Adão dos séculos vindouros. Sei que entre olhar dois olhos que
não se enxergam por entre uma cabeleira despenteada e uma mulher nua,
seu olhar dará preferência àquelas protuberâncias que fazem a festa dos
olhos gulosos de muitos e de muitas...saiba porém que a dona destes
atributos, naqueles anos de psicodelia chamava-se karinne, e que tinha
em sua nudez uma força além da limitação destes olhares curiosos e
famintos pelo nada. Seu corpo nu almejava somente a nudez, natural, e
nada mais.
*Jorge Bandeira é escritor,
autor do livro de poemas BELA CRUELDADE.
Manaus, 13 de fevereiro de 2011.
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