') popwin.document.close() }
Jornal Olho nu - edição N°125 - abril de 2011 - Ano XI |
Anuncie aqui |
||
INÚTIL CANTO E INÚTIL PRANTO PELOS ANJOS CAÍDOS (QUE PERDERAM OS FUNDAMENTOS) por Plínio Marcos* O seco olhar do velho índio, seco como o olhar de um corpo sem alma, correu pelo chão seca da triste aldeia e parou na gente seca de sua outrora tão gloriosa tribo. Gente seca que, com as mãos secas de almas sem esperança, teciam, a duras penas, vergados sob o peso da indolência, seus ofícios aviltantes, nesses tempos secos, tempos dos tempos da raça. E o ofício ali exercido por gente seca, de mãos secas, de almas sem esperança, lhes foi generosamente legado por seus bravos antepassados, por seus venerados antepassados, que foram bravos e foram venerados justamente porque exerceram esses ofícios orgulhosamente em seus tempos, que foram muitos tempos, tempos bastantes para os fundamentos da tribo serem plantados, tempos bastantes para a vida da tribo ser honrada por várias gerações. E o seco olhar do velho índio, seco como o olhar de um corpo sem alma, já turvo por tantos tempos de sua existência seca, começava a bem ver, ver de ver, ver de perceber, ver de penetrar nas entranhas das coisas, ver de enxergar o essencial. E o seco olhar do velho índio, seco como o olhar de um corpo sem alma, via, via pela primeira vez que o arco, a flecha, o tacape e os cocares de penas multicoloridas, que as mãos secas de almas sem esperança dos lamentáveis índios sem cor, sem brilho, sem cantos arrematavam, vergados ao peso da indolência, jamais seriam as armas de valor provado em tantas batalhas, como aquelas que, em outros tempos, empunhadas por bravos guerreiros, foram guardiães da honra da tribo, da liberdade da tribo, do respeito da tribo por si mesma. E o seco olhar do velho índio, seco como o olhar de um corpo sem alma, via, via pela primeira vez que o barro, amassado sem nenhum encantamento pelas secas índias, de mamas secas, de ventre apodrecido, parideiras de uma prole sem cor, sem brilho, sem cantos, prole que não encarnava o bravo espírito dos bravos guerreiros de outrora, jamais seria a cuia das doces bebidas que os deuses ensinaram os bravos índios a beber para terem sempre seus ânimos renovados para os duros combates da preservação. E o olhar seco do velho índio, seco como o olhar de um corpo sem alma, via, via, via, pela primeira vez, que a mandioca batida pelas secas mãos de almas sem esperança jamais seria a farinha da nutrição da gente seca s sua outrora gloriosa tribo. O seco olhar do velho índio, seco como o olhar de um corpo sem alma, via, via, via que jamais, jamais, jamais o trabalho feito pelas mãos secas de almas sem esperança seria o nobre trabalho que dignifica o homem. Que o arco, a flecha, o tacape, o cocar de penas multicoloridas, o barro, a farinha jamais seriam distendidos, moldados, consumidos pela liberdade,pela honra, pelo autorrespeito da tribo, gente seca, de mãos secas sem esperança. O arco, a flecha, o tacape, o cocar de penas multicoloridas, o barro, a farinha, feitos pela geração enferma da outrora gloriosa tribo seriam levados pelos tristes índios sem cor, sem brilho, sem canto, com passos trôpegos, ao posto comercial dos brancos cidadãos contribuintes e seriam trocados pela branca aguardente dos brancos cidadãos contribuintes. E a branca aguardente dos brancos cidadãos contribuintes envenenaria o sangue, a energia, o trabalho, a fé, a esperança do índio. Envenenaria o índio, e o arco do índio, e a flecha do índio, e o cocar de penas multicoloridas, e o barro do índio, e a farinha do índio,e a cor, e o brilho, e o canto do índio, e a honra, e a liberdade, e o respeito do índio por si mesmo, e todos os fundamentos da tribo do índio, e o ventre apodrecido das mulheres da tribo, que geraria cada vez mais a miserável das descendências do índio. E o arco, a flecha, o tacape, e o cocar de penas multicoloridas, e a cuia iriam enfeitar as brancas paredes das brancas moradas dos brancos cidadãos contribuintes. E o olhar seco do velho índio, seco como o olhar de um corpo sem alma, via, via, via, pela primeira vez, que esse comércio já há tempo praticado por sua gente, por ele mesmo e por seus antepassados, com os brancos cidadãos contribuintes, lhes envenenava o sangue, os fundamentos recebidos por herança, os gritos de guerra de toda uma raça, o sonho, a energia, o trabalho, a ânsia de liberdade. E o seco olhar do velho índio, seco como o olhar de um corpo sem alma, via, via, via que era o tempo dos tempos de sua raça. Via, via, via, o olhar seco do velho índio, seco como o olhar de um corpo sem alma, que era a grande hora de dor da sua tribo. E sentia que era chegado o seu momento-limite de cacique, o momento de tomar a decisão mais corajosa de todos os tempos da tribo. Era o momento doloroso da escolha. Era a hora do crepúsculo. Era a hora do crepúsculo da tribo e também era o crepúsculo de mais um dia de triste trabalho da outrora gloriosa tribo. O sol se punha por trás das montanhas e a primeira estrela brilhava no infinito. E o seco olhar do velho índio, seco como o olhar de um corpo sem alma, se fixou nessa estrela. E seu pensamento de elevou até os grandes espíritos e se fez a magia. E o velho índio, com a visão imemorial, viu com coragem todos os tempos da sua tribo. Correu pelas matas com a alma virgem dos bravos índios que plantaram os fundamentos da tribo, quando as matas eram virgens das patas dos brancos cidadãos contribuintes. E depois viu chegarem as brancas caravelas, de brancas velas, com a tripulação branca de cidadãos contribuintes, que tinham brancas armas que matavam à distância. E o velho índio viu e reviu que seus antepassados se deslumbravam diante da branca feitiçaria dos brancos cidadãos contribuintes, mas não se deixavam subjugar. E os brancos cidadãos contribuintes em vão tentaram subjugar os bravos índios, com suas brancas armas. Não se subjuga um bravo. Nem o ferro, nem o fogo, nem a chibata subjuga um bravo que sonha o sonho mais lúcido do espírito, que é a liberdade. Liberdade para ser caminheiro em busca de luz, da síntese do amor e do tempo. E, esgotados os recursos das armas, os brancos cidadãos contribuintes vieram com os brancos truques da branca tecnocracia. E o velho índio, com sua visão imemorial, viu chegarem no meio de sua gente os falsos filhos dos deuses, os falsos homens do fogo, os falsos filhos do trovão, reles lacaios brancos dos brancos cidadãos contribuintes que assombraram os índios com seus brancos truques tecnocratas. Assombravam os índios os brancos truques da branca tecnocracia dos brancos cidadãos contribuintes, mas não os subjugavam. Os bravos índios, assim como todos os bravos, com todo o vigor das almas puras, ingênuos no fervor de suas crenças, podem ser acabados pelo furor das armas, podem ser enganados, mas não se subjugam suas almas livres, nem com o ferro, nem com o fogo, nem com a chibata. Não se prende o espírito, nem o espírito se apaga, quando ele retém, mesmo que inconsciente, a chama geradora da virilidade. E os ingênuos, no fervor de suas crenças, sempre retêm a sagrada chama. E o índio não podia ser escravo dos fundamentos da sua tribo, por querência, por respeito a si mesmo, por honra, pelo desejo lúcido do espírito de ser livre. Não se escraviza quem se escravizou espontaneamente no fervor de uma fé. E o índio de alma pura não se submeteu nem ao ferro, nem ao fogo, nem à chibata, nem aos assombrosos truques tecnocratas dos brancos cidadãos contribuintes escravocratas, mesquinhos escravos da própria ganância. E a visão imemorial do velho índio viu, viu, viu bem o peito de seus bravos antepassados ser rasgado pelo fogo e pelo trovão dos brancos cidadãos contribuintes. Viu, viu, viu, com a visão imemorial, o sangue generoso dos seus bravos antepassados regar o solo de terra firme, consagrada por toda uma raça que se nutria de honra e se multiplicava em bravos. E o velho índio viu, viu, viu, com a visão imemorial, que não se ganha nas armas a alma de um bravo, ingênuo no fervor de sua crença. Mas, o velho índio, pálido de espanto, viu, viu, viu que um bravo, mesmo ingênuo no fervor de sua crença, pode ser seduzido com a hipócrita palavra, com o hipócrita paternalismo, com hipócritas palavras. Com a lábia. O velho índio, com sua visão imemorial, viu, viu, viu, pálido de espanto, descerem das brancas caravelas dos brancos cidadãos contribuintes brancos sacerdotes que, viajando sem bandeira, em nome do grande Deus branco dos brancos cidadãos contribuintes, foram pacientemente, com agrados, ensinando a língua estrangeira, os costumes estrangeiros, a religião estrangeira, a cultura estrangeira ao índio. E foram desarmando o índio dos seus fundamentos, dos fundamentos da sua tribo, foram descaracterizando o índio e entregando o índio, desarmado dos seus fundamentos e de suas crenças, aos brancos cidadãos contribuintes. O homem, sem os seus fundamentos de origem, se corrompe, se vicia. E os brancos sacerdotes dos brancos cidadãos contribuintes, com a pose de pais magnânimos, corromperam o espírito do índio nos seus fundamentos. E os brancos cidadãos contribuintes viciaram a carne do índio, geração após geração. E foi fácil para os brancos cidadãos contribuintes, com suas brancas armas tecnocratas, matarem os poucos índios que não se degeneraram, que não se desvincularam dos fundamentos da tribo, que não se descaracterizaram. E aí chamaram os índios desarmados dos seus fundamentos, adoecidos de corpo e alma, para o comércio. Comércio feito sempre na língua branca dos brancos cidadãos contribuintes, com pesos e medidas dos brancos cidadãos contribuintes, peritos em trocar suas quinquilharias supérfluas pelos gêneros vitais dos índios. E os brancos cidadãos contribuintes chamaram o índio, desarmado dos seus fundamentos, desarmado do fervor de sua crença, doente de corpo e alma, empobrecido por um comércio sórdido, para fazer acordos territoriais. E os acordos foram feitos na branca língua dos brancos cidadãos contribuintes, com os pesos e as medidas dos brancos cidadãos contribuintes. E foram limitados os espaços do índio, e foram limitados os sonhos do índio, e foram apagados os fundamentos da tribo do índio. E o índio, ao ser desligado dos seus fundamentos, como qualquer povo que se desliga dos seus fundamentos, perdeu o fervor ingênuo em sua crença, se tornou enfermo de corpo e alma, adquiriu os brancos vícios dos brancos cidadãos contribuintes, ficou desfibrado, indolente, sem coragem para se rebelar. E o velho índio viu, com sua visão imemorial, anos e anos a fio, sua tribo, sua raça inteira se degenerar no contato social, religioso, cultural, comercial, com os brancos cidadãos contribuintes. E viu o velho índio, viu, viu, viu, quantas vezes quis ou teve coragem. Viu tudo com visão imemorial. E entendeu o velho índio que a sua outrora gloriosa tribo começou a morrer quando aprendeu a fala branca dos brancos cidadãos contribuintes. Que começou a morrer quando aceitou o grande Deus branco do branco cidadão contribuinte. Que os brancos cidadãos contribuintes, em nome da religião, da filosofia, da cultura, da tecnocracia, mataram a religião, a filosofia, a cultura e todos os fundamentos da tribo e da raça. E o velho índio voltou para si mesmo. Era a hora grande, hora de todos os espíritos, de uma noite de lua cheia. A aldeia estava em silêncio. Os índios dormiam o sono sem repouso das almas secas de sonhos. Era a hora grande, hora de todos os espíritos, de uma noite de lua cheia, mas era também a grande hora de uma tribo inteira. E o seco olhar do velho índio, seco como o olhar de um corpo sem alma, correu pelo seco chão da triste aldeia dos lamentáveis índios sem cor, sem brilho, sem canto e encontrou o sagrado tambor de guerra, há muito tempo mudo por não poder ser tocado por mãos secas de almas sem esperança. E o velho índio de seco olhar, como é seco o olhar de um copo sem alma, tocou o tambor, tocou o tambor, tocou o tambor. Tocou o toque guerreiro de toda a sua tribo, tocou o toque de autorrespeito, o toque sublime dos sublimes anseios de liberdade de um povo. Dentro da noite soou forte o toque de guerra da tribo do velho índio, o toque dos fundamentos da tribo do velho índio, o toque dos anseios de liberdade de toda a raça do velho índio. Mas, os lamentáveis índios, sem cor, sem brilho, sem canto, estavam arreados pela indolência num sono sem repouso das almas secas de sonho. Nenhum respondeu aos apelos do toque do tambor guerreiro batido pelo velho índio. Nenhum escutou o toque dos fundamentos da tribo e da raça, batidos no tambor guerreiro pelo velho índio. E o seco olhar do velho índio, seco como o olhar de um corpo sem alma, se encheu de lágrimas. Ele via, via, via tudo com clareza. Mas era tarde. Ele não tinha mais a cor, o brilho, o canto para convocar para labuta da vida uma gente que se amesquinhou no aviltante trabalho de mãos secas, de almas sem esperança. Já não tinha, o velho índio, a cor, o brilho, o canto. A sua pele encardida, o seu sangue apodrecido, seu espírito vacilante já não tinha a cor, o brilho, o canto para convocar sua gente de pele encardida, de sangue apodrecido, de espírito vacilante, para a labuta da vida que dignifica a existência. E já não tinha a cor, o brilho, o canto para convocar sua gente sem cor, sem brilho, sem canto, para a morte honrosa que dignifica a existência. E o velho índio compreendeu que toda sua raça estava surda aos próprios fundamentos da raça. E compreendeu que, quando um povo já não pode ser convocado para a labuta da vida, que é o que dignifica a existência, quando um povo já não pode ser convocado para a morte honrosa, que é o que dignifica a existência, é o tempo final desse povo, é o tempo dos tempos desse povo. E, compreendendo tudo isso, o velho índio chamou a sua tribo para o centro da triste aldeia. E vieram todos, sonados, arrastando seus corpos cansados de almas sem esperança, e pararam diante do velho índio. O velho índio de olhar seco, seco como é o olhar de um corpo sem alma, olhou os lamentáveis índios sem cor, sem brilho, sem canto, de uma tribo em degeneração total e, com a voz firme, ordenou serenamente que se matassem todas as mulheres da tribo nascidas daquela lua em diante. Ordenou serenamente, com voz firme de um grande cacique, ordenou com ternura, ordenou certo de ser obedecido, e se afastou. Foi sentar-se num tronco seco de uma outrora frondosa árvore e, com os olhos secos, como são secos os olhos de um corpo se alma, ficou espiando o nada, o vazio, esperando o fim de toda sua raça.
*Plínio Marcos(1935-1999), um dos principais nomes do Teatro Brasileiro. Autor de clássicos absolutos de nossa dramaturgia, eis alguns: “Dois Perdidos Numa Noite Suja”, “Barrela”, “O Abajur Lilás”, “Navalha na Carne”, “Quando as Máquinas Param”, “Homens de Papel”. Sua obra é vasta e inclui vários gêneros literários, incluindo o conto. O conto lido acima foi retirado de um raro livro publicado em 1977 pela pequena editora Lampião. O exemplar que possuo é autografado, o que o torna um item especial em minha biblioteca. Resolvi divulgar este conto do Plínio por não ser tão conhecido no conjunto de sua importante obra(acho que muito pouco conhecido, por sinal!) e por tratar de um tema que muito nos sensibiliza, a sobrevivência dos povos indígenas. Como registro: assisti uma palestra-relâmpago do Plínio Marcos em 1994, em São Paulo, no MASP, o tema, bem sugestivo, “A Importância da merda na história da civilização”. Manaus, 07 de janeiro de 2011. Jorge Bandeira** **Jorge Bandeira é amazonense de Manaus, historiador, graduado e pós-graduado pela
Universidade Federal do
Amazonas. Acessem também o blog:
http://naturismoamazonense.blogspot.com
(enviado em 8/01/11)
|
||
Olho nu
- Copyright© 2000 / 2011
Todos os direitos reservados.