A NUDEZ NA BÍBLIA
por Aguinaldo
da Silva*
A idéia de que o corpo humano é algo impuro e pecaminoso ainda remanesce
na temática religiosa ocidental. Quero esclarecer aqui algumas passagens
bíblicas que tratam sobre a nudez do corpo, entre as quais, algumas que
são usadas para condená-la ou considerá-la como coisa abjeta a Deus.
Uma errônea interpretação do relato de Gênesis afirma que o fruto
proibido era o contato sexual de Adão e Eva, que ao conhecerem o sexo
desobedeceram e praticaram o primeiro pecado.
Esta interpretação contradiz redondamente o contexto do relato de
Gênesis. Antes de pecarem Deus já havia ordenado ao homem e a mulher que
“fossem fecundos e se multiplicassem e enchessem a terra (Gênesis
1.27-28)”.
Como poderiam Adão e Eva obedecer a tal ordem sem terem relações
sexuais? Devemos realmente supor que Deus lhes deu uma ordem e então os
sentenciou à morte por tentarem cumprirem a mesma? O relato de Gênesis
mostra que Adão e Eva pecaram em separado, e não simultaneamente. Eva
foi tentada a comer do fruto primeiro, e depois deu a seu esposo para
que dele comesse (Gên. 3.6). Assim, relacionar o primeiro pecado com a
descoberta do sexo é algo fantasioso e fruto de uma interpretação
distorcida do texto bíblico.
A segunda questão levantada por alguns está no relato de que “Deus os
vestiu” após o pecado. Após terem incorrido em desobediência o casal
buscou se vestir ou se adornar com folhas de figueira. Pela lógica e
pelo que o texto indica, não fizeram isto porque passaram a achar seus
corpos ridículos, pois como já afirmamos anteriormente, os mesmos já
tinham intimidade física e sexual. Isto demonstra uma tentativa de se
livrarem da consciência culpada. Se sentindo indignos diante de Deus
quiseram mudar a aparência deles na busca de uma condição mais digna. O
ato de Deus em vesti-los foi uma grande representação do plano da
redenção, baseado no futuro sacrifício de Cristo que, simbolizado pelo
cordeiro, iria tirar o pecado do mundo (João 1:29).
A proibição relatada na lei de Moisés, nas palavras: “não descobrirás a
nudez de tua parenta” (Levítico 18); não implica em nudez física, mas em
ter intimidade sexual. Traduções modernas da Bíblia, como a ‘Nova Versão
Internacional’, já trazem esta expressão. Era uma maneira eufêmica do
hagiógrafo se referir às relações sexuais, tanto é que em nenhum outro
lugar da lei mosaica se encontra a proibição ao incesto. Se fosse
literalmente ver a nudez, então seria lícito ver a nudez de qualquer
outra mulher, exceto de uma parenta, algo sem sentido.
A ordem na lei Mosaica de que os sacerdotes deviam usar calções de linho
durante o ofício sagrado é um argumento usado por alguns para dizer que
a nudez humana é repugnante a Deus. Temos que verificar o contexto. Ali
se tratava de uma medida preventiva, para que quando o sacerdote subisse
os degraus do altar sua genitália não ficasse visível e assim não
despertasse risos ou gracejos na congregação, quebrando a reverência do
culto. Não podemos achar que a nudez era ofensiva a Deus, pois ordenou
ao profeta Isaías que andasse nu e descalço durante três anos (Isaías
20.2). O profeta Miquéias também teve uma atitude semelhante (Miquéias
1.8). Não podemos aceitar que Deus num momento repudiava a nudez e
noutro a aceitava.
Uma referência a Saul (primeiro rei de Israel), diz que o mesmo se
despiu e assim permaneceu profetizando durante todo um dia. A narrativa
indica que o inusitado ato do rei, de profetizar despido, era um costume
dos profetas, pois alguns que o viram interrogaram se Saul havia se
tornado profeta. (I Samuel 19.24).
Na volta da arca da aliança para Israel Davi recepcionou o cortejo que a
trazia, o qual despojado de seus trajes reais e usando apenas uma estola
sacerdotal, dançou alegremente diante da arca. Sua atitude despertou a
ira de sua esposa, que ao vê-lo disse: “Quão honrado foi o rei de
Israel, descobrindo-se hoje aos olhos das servas de seus servos, como
sem pejo se descobre qualquer dos vadios.” (II Samuel 6.20). O episódio
é bastante revelador pois indica que o rei semi nu louvou ao Senhor sem
ofendê-lo, diante do objeto de culto mais sagrado em Israel, diante do
qual alguns já haviam morrido por falta de reverência.
No Novo Testamento também não encontramos qualquer condenação à nudez.
Uma passagem diz que Pedro estava pescando nu (João 21.7), o texto não
informa o motivo de o mesmo assim agir. Possivelmente era seu hábito ao
pescar.
Outro texto afirma que um discípulo estava vestido apenas por um lençol
na noite em que Jesus foi preso, ao tentarem prendê-lo fugiu nu (Marcos
14.52). O fato chama a atenção para a pouca importância que os
discípulos davam às roupas, demonstrando muita simplicidade, sem
qualquer luxo ou ostentação.
Uma passagem do Apocalipse exorta a que o fiel “guarde as suas vestes e
não ande nu e não se vejam as suas vergonhas” (Apoc. 16.15). O referido
livro é profético e sua linguagem e quase toda simbólica, sendo que
neste texto o sentido é totalmente alegórico em virtude do contexto.
‘Vestes’ na simbologia bíblica significa justiça, se referindo à justiça
de Cristo concedida para salvação do pecador. Portanto, nada tem a ver
com nudez literal.
A ideia de que o corpo humano, por si só, é algo maligno ou impuro,
dentro do contexto do cristianismo, se deve à influência do maniqueísmo.
“Deste ficou uma a concepção dualista entre o bem e o mal, a luz e as
trevas, a alma e o corpo”1.
Santo Agostinho sofreu tanto a influência do maniqueísmo quanto do
neoplatonismo, correntes que contrastam o espírito e o corpo como
emanações do bem e do mal respectivamente. Assim se formou uma noção
negativa do corpo, por parte da tradição da igreja, que perdura até os
dias de hoje.
Porém, como vimos anteriormente, na Bíblia a nudez não tem a conotação
de pecado ou proibição divina. Ela varia o sentido conforme o contexto,
significando certas vezes: inocência, humildade, devoção, humilhação,
pobreza, ou simplesmente estar. Toda visão negativa da nudez é
construída a partir de impressões pessoais, geralmente com base em
interpretações distorcidas do texto bíblico.
1 COTRIM Gilberto, Fundamentos da Filosofia, Editora Saraiva,
São Paulo-SP, 1997, p. 130
*Teólogo e escritor
aguinaldodasilva@yahoo.com.br
(enviado em 25/01/12)