Extremamente insatisfeito
com o preço abusivo da cerveja e descobre que seus amigos compartilham
da mesma indignação? Proponha a eles ir todos protestar em frente ao
supermercado, totalmente nus. Quanto maior o grupo, melhor. E pode dar
certo. Mas, se ainda pensa que devemos o possível efeito positivo do
ato, seja por uma causa nobre ou nem tanto, à sua origem histórica e por
ele lembrar a todos de que é preciso proteger toda a sociedade contra
atentados “ao pudor, à moral e aos bons costumes”, então é preciso
reajustar esta crença por ela ter na verdade, como base, puras e nobres
convicções idealistas e filosóficas e nada badernistas, de um lado, ou
preconceituosas, do outro.
Atribui-se ao grupo
Doukhobors serem eles os primeiros a criar, no início do século 20, o
hábito, digamos hoje tradicional, de manifestantes contrários a uma
resolução comercial, social, política ou judicial questionáveis
protestar em público, de forma isolada ou com outros de igual
pensamento, sem roupas. E se no ato apenas “as partes” estiverem
devidamente cobertas, mesmo assim ele será em muitos países interpretado
como uma exibição de nudez total.
E como essa vontade de
assim manifestar surgiu? Para se entender que a evidência de o costume
em se ficar nu em local onde a maioria não está nua realmente chama a
atenção, um pouco de história é necessário – e acabamos entendendo que
chamar atenção teve motivo singelo, ainda que dramático, entre esse povo
pioneiro.
Os Doukhobors surgiram na
Rússia (onde hoje se localiza a Ucrânia) no século 18 (alguns
pesquisadores não descartam a possibilidade de que esse surgimento tenha
realmente ocorrido no século anterior), em meio ao império russo, como
um movimento sectário espiritual. E mesmo com o passar dos séculos,
nunca conseguiram eles existir em número significativo, nem despertar
interesse sobre seu passado ou conquistar novos adeptos com seus
ensinamentos. Daí o quase total desconhecimento nos dias de hoje no
resto do mundo a seu respeito.
O termo Doukhobors vem da
palavra russa “dukhobortsy”, que literalmente significa “lutadores
espirituais”, e o grupo só passou a assim se autodenominar, por questões
políticas, no fim do século 18 – além de serem declaradamente contra
religiões cujas rígidas doutrinas são estabelecidas pela mesma Bíblia
que tanto respeitavam. Como sabemos, quando estes dois aspectos juntos
se mostram antagônicos a uma nação inteira, política versus religião – e
vice-versa, as chances de uma “grande explosão”, contra ambas as partes,
são eminentes. E assim foi.
A real crença dos
Doukhobors, povo que vivia de forma extremamente simples, em total
comunhão de respeito e fraternidade, pregando entre si a igualdade,
voltados para e obtendo da natureza toda a necessária subsistência, era
a de que os homens deveriam se guiar pela razão e não pelo simbolismo,
hermetismo, obscurantismo e alegoria dos milagres descritos na Bíblia.
Esta era uma visão, portanto, totalmente contrária à da maioria absoluta
da população russa, a qual de forma alguma ousaria sequer pensar em
colocar tal assunto em dúvida ou em discussão, e cuja consciência os
levou a ter que viver e a se organizar de forma segregada e secreta,
longe e desconhecida dos olhos daqueles outros, para poderem sobreviver
e manter sua liberdade, ainda que restrita, na linha de pensamento e a
qual, logicamente, acreditavam e defendiam.
Ironicamente, se podemos
considerar assim, os Doukhobors eram grandes admiradores de Jesus Cristo
– mas a quem frequentemente eles fazem alusão como “um simples mortal de
qualidades divinas na inteligência em seu mais alto grau”. E, por toda a
simpatia a ele, foram equivocadamente também conhecidos entre o povo
russo como criadores de uma nova religião, a da “Cristandade
Espiritual”.
Não menos tementes a Deus
(que em verdade para eles só podia ser encontrado na alma e na essência
de cada um dos seres humanos, de cada ser vivo e matá-los seria o mesmo
que matar o próprio Deus), sua maioria era formada por analfabetos e
seus encontros para discutir o assunto, os quais não eram tidos entre
eles como “manifestações religiosas”, porém como forma de obter e
compartilhar ensinamentos, eram feitos ao redor de mesas, onde havia
pão, sal e água, e tinham como tônica esta única crença. Trocavam
ensinamentos contidos em salmos e provérbios extraídos do livro ao qual
intitularam “O Livro da Vida”. O contraste entre a realidade da Rússia
Czarista da época, de maioria pertencente à Igreja Ortodoxa Russa (ou
Patriarcado de Moscou e que só se modernizou a partir de 1905 – início
da queda da monarquia com o movimento socialista) como mandava o império
russo, e o pequeno e tímido movimento espiritualista dos Doukhobors,
herético, diferente e ousado demais comparado ao predominante “padrões
de pensamento e conduta russos”, só podia mesmo levar a conflitos quando
esses dois “povos”, tão opostos nas convicções, fossem “convidados” a se
aceitar.
E o inevitável aconteceu.
No fim do século 18, cidadãos e cidadãs russos que estiveram expostos
aos ensinamentos dos Doukhobors, embora em pequeno número, tornaram-se
fervorosos simpatizantes. Estando assim “misturados”, membros dos
Doukhobors por sua vez se interessaram em conhecer melhor os
ensinamentos contidos na religião ortodoxa russa. Atraídos também pelo
estilo de vida da cidade grande, embora a mesma tivesse mais a pobreza
que outra coisa melhor para oferecer, resolveram abandonar a comunidade.
Estes, já convertidos, mas sem abandonar por completo o pensamento de
origem, tornaram-se conhecidos como “os Cristos dos Doukhobors”. E
assim, com eles integrados à sociedade, curvando-se à elite tradicional
russa e divulgando os pensamentos provocativos de seu povo de origem, a
perseguição aos puros e pacifistas Doukhobors passou de quase nada a se
intensificar.
Pedro Verigin, líder na
época dos Doukhobors, foi levado e interrogado pela polícia sobre suas
convicções religiosas. Em resposta, declarou ele que Deus havia dado ao
homem a liberdade de decidir seus próprios passos e que não haveria,
assim, qualquer necessidade de este ser regido por qualquer outro homem
que se julgasse superior a qualquer um deles, pois, como entendiam,
todos os homens eram iguais perante Deus e só a Ele deviam obediência. A
declaração foi entendida mais como uma provocação política contra o
império russo do que uma mera e isolada crença religiosa e os dias de
paz dos Doukhobors acabavam naquele instante de existir – em princípio
com a prisão de Verigin. Afinal de contas, eles eram cidadãos russos e,
como tais, deviam indiscutível obediência à monarquia.
Mesmo à distância, e
acompanhando o que ocorria em sua comunidade, os ensinamentos de Verigin
continuaram a chegar a ela através de cartas secretas para reforçar os
ideais dos Doukhobors. Seguidos à risca, seus ensinamentos levou-os a
adotar o que ele chamou de “O Grande Partido dos Doukhobors”. Instituiu
ele o seguinte a seu povo: “Os Doukhobors são um povo eleito por Cristo,
verdadeiramente Cristão e não se deve esperar deles trabalhar de forma
física, mas de forma espiritual. Eles devem se desapegar de seus bens
materiais perecíveis. orar de acordo com o Evangelho e os animais
domésticos devem estar em liberdade, porque tudo o que está vivo deve
ter liberdade. E o dinheiro que pertence a César deve retornar a César.
Os homens estão pervertendo sua natureza, e seu corpo que é a síntese da
perfeição, ao usar roupas e deveriam viver todos nus, como o primeiros
humanos, Adão e Eva. E seu alimento deve ser apenas constituído de
frutas, vegetais e água. Eu próprio, Verigin, tentei me alimentar de
musgos apenas inspirado pelas renas e descobri seu bom sabor”.
Prosseguiu ele
recomendando que todos os membros não passassem a fumar, nem beber vinho
ou comer carne, porque o homem não devia privar qualquer coisa viva da
vida. Além disso, recomendou também que deveriam manter a castidade,
como forma de dar integridade à perfeição e que os solteiros não deviam
se casar e que os já casados vivessem como irmãos e irmãs. Recomendava a
seu povo, cujos membros casavam entre si, que deveriam manter-se puros e
prontos para encontrarem-se com Cristo, como as Cinco Virgens da
parábola do Evangelho de quem tanto ouviam falar. Finalmente, Verigin
aconselhou todos os jovens de sua comunidade a renunciar ao serviço
militar e a destruir toda e qualquer arma que pudessem já ou vir a
possuir.
Estando
preso por cinco anos e cuja pena acabava de ser estendida para mais
cinco, Verigin sabia que em breve sua comunidade também seria obrigada a
prestar obediência ao império e que a melhor estratégia para eles
sobreviver seria a de não reagir com qualquer sinal de violência. E se
sua comunidade viesse a ser aniquilada, estariam eles, com sua
recomendação de manterem a castidade, em menor número de membros, e
prontos a cumprir os desígnios de Deus para sua Perfeita Criação – o
homem. Tais desígnios diziam que “Quando o homem deixa de confiar em sua
própria consciência e em sua liberdade, nem mesmo seu Deus os poderá
salvar”.
Pacifistas por tradição e
convicção e lembrados a assim sempre agir por seu líder Pedro Verigin,
em 1895 todos os saudáveis homens e mulheres Doukhobors foram convocados
a ir servir nos campos militares do império e treinar para possíveis
guerras. Porém, em conjunto, destruíram as armas assim que as receberam
do governo russo e recusaram-se terminantemente a deixar a comunidade. A
recomendação que veio antes, por carta secreta, de Verigin foi cumprida.
E pelos desígnios do Czar, os jovens Doukhobors, homens e mulheres,
foram facilmente capturados, não resistiram à prisão e foram condenados
não à morte, mas à severas punições físicas, para servirem de exemplo a
outros possíveis rebeldes da comunidade, em praça pública, por meio de
30 chibatadas aos homens e 40 chicotadas às mulheres, além de terem
todos seus bens confiscados e vendidos e de então serem expulsos com
suas famílias para a Sibéria. Sob a convincente ameaça de que todos
seriam igualmente punidos por desobediência ao império, mas sem nenhuma
reação de resistência, os demais membros da comunidade, velhos e
crianças, foram poupados. Da forma como Verigin havia previsto e pôs em
execução seus planos.
Mesmo assim, a forma
secreta de existir e de viver dos pacíficos Doukhobors, com seu modo de
pensar e agir considerados pelo governo czarista russo como altamente
subversivo, não teve mais como ser mantida e sua comunidade não mais
pôde viver em verdadeira paz. Temerosos de ataques em retaliação pelo
governo e revoltosos contra a “absurda” recomendação de Verigin de
manterem a castidade, a comunidade se dividiu em dois outros partidos:
os “Myasniki” (“carnívoros” em russo, por eles também se recusarem a
adotar a recomendação de não comer carne) e os “Postniki” (“jejunos”,
que ficam em jejum, em russo e que continuaram a seguir todos os
ensinamentos e as recomendações de Verigin). A decisão, logo se tornou
ineficiente a este segundo grupo. Com a incidência entre os casados de
casos de abortos, estes desistiram da divisão e passaram para o outro
lado.
Os mais jovens, e em menor
número (cerca de apenas 150), continuaram a manter a antiga ideologia,
mas não se encontravam fortes, o suficiente, para enfrentar
pacificamente a insistente perseguição da polícia russa. Cada vez mais
fragilizados, com seu líder há tanto tempo exilado e sem o apoio do
outro grupo que se mantinha agora simpático ao regime russo, deixaram-se
condenar à deportação. Devido à Estrada de Ferro Transiberiana ainda
estar em construção, levaram eles mais de um ano para chegar, de barco,
montados em bois e principalmente a pé, na Sibéria, a qual na maior
parte do ano se encontrava coberta por espessa camada de neve. Lá
chegando, as rigorosas condições climáticas fizeram com que eles
ficassem por pouco tempo vigiados por policiais e, então, abandonados à
própria sorte.
Desoladas, com o anúncio
da deportação de seus irmãos, muitas das mulheres casadas, do grupo que
se debelou, pediram a seus maridos que as deixassem ir se juntar àquele
outro grupo em sinal de solidariedade. A força da fraternidade entre os
Douhobors dava sinais de ser restabelecida. Mas, não obtiveram permissão
por ser totalmente desconhecido ao que elas estariam expostas na grande
aventura e poderiam encontrar naquele lugar distante e tão adverso – se
vivas chegassem.
Nem a paz de espírito, ao
grupo “subversivo” e agora separado dos Doukhobors, tinha como ser
reconquistada.
Pelo menos, até o
equivocado e injusto conceito, de serem eles todos subversivos, começar
a sensivelmente se dissipar. E somente a partir da segunda metade do
século 20, graças principalmente à antes forçada imigração em massa de
membros da outra parte da comunidade, os “Myasniki”, que se arrependeu
da divisão pelo que, devido a ela, havia acontecido a seus outros
irmãos, leais a Verigin e que se viam agora na obrigação de eles mesmos,
a todo custo, restabelecer a paz em todos os sentidos a seu povo, como
conheciam antes em suas raízes.
Confiantes de só assim ela
conseguir, eles planejaram uma grande fuga em direção ao Canadá, país
jovem e promissor no Novo Mundo, o que se deu em 1899. No ano anterior,
a informação sobre essa decisão chegou aos Doukhobors na Sibéria, junto
com a recomendação de Verigin de eles também fugir para aquele outro
país. Nos anos de 1898 e 1899, mais de sete mil deles fugiram para o
Canadá. A maioria, cerca de doze mil deles e que se tornaram leais ao
governo com o apego de ficarem sob sua proteção, não delatou aquela
parte de seu povo que partia, mas resolveram permanecer em solo russo.
Em 1902, Verigin obteve por decreto o fim de seu exílio de 16 anos e,
livre para ficar em solo russo com a outra parte, partiu também para se
juntar aos fiéis irmãos que agora o esperavam na América.
E quanto ao protesto sem
roupa dos Doukhobors? Para chegarmos a ele, tem início aqui, a narração
sobre um marco em sua história e que se transformou num enorme e
surpreendente paradoxo em relação aos convictos princípios pacifistas e
espiritualistas que, em lugar neutro, longe de casa, não teve como
deixar de surgir mesmo entre os mais tradicionais dos Doukhobors: já
acostumados a este novo lar, parte desse grupo de imigrantes russos, tão
avessos à política, se tornou materialista!
Não havia como esquecer as
perseguições políticas, religiosas e sociais sob o comando do Czar
Nicolas II, às quais ficaram constantemente expostos os Doukhobors, e
que os levaram a também a perder grande parte de suas tranquilas terras
naquela região russa para o governo. A fome e a morte foram inevitáveis
decorrências. A esperança pelo restabelecimento e de poderem usufruir da
paz em solo canadense, em época que a estrutura sócio-política do jovem
país ainda se consolidava, animou o grupo para ele se mudar. O governo
canadense, por sua vez, os recebeu de braços abertos e lhes ofereceu
quatro grandes áreas de terras para que eles as explorassem e
desenvolvessem com toda sua experiência na agricultura. O grande grupo
de irmãos da comunidade, que chegou ao novo lar, com todos sempre
juntos, viu-se pela primeira vez forçado a se separar, por ter sido
compulsoriamente dividido pelo governo canadense em quatro grupos – mas
nem todos se deram bem na divisão. Enquanto outros, muitíssimo!
Devido às imposições
geográficas e climáticas, uns tiveram a sorte de ter maior produtividade
no plantio de frutas, para o consumo próprio e para a venda, do que
outros. A fartura nas colheitas levou-os à obtenção de grande renda
também com a fabricação caseira de geleias e doces. Enquanto outros dos
Doukhobors, levados a terras menos prósperas, quase nada produziam e
continuavam a sofrer as mesmas agruras do país de origem. Irmãos antes
humildes e agora cegos pela riqueza não se sensibilizavam com a má sorte
dos irmãos ainda pobres, os quais também não obtiveram qualquer ajuda do
governo canadense, que alegava já ter ajudado a todos da comunidade de
igual forma, cedendo graciosamente a terra em que viviam.
Mais decepcionados do que
revoltados com tamanha e surpreendente mostra de insensibilidade e
ausência de solidariedade por parte de seus outros irmãos (além de muito
famintos, doentes e confusos), o grupo resolveu se organizar e saíram
juntos de suas terras, no que ficou conhecida como a “Marcha de Cristo”,
em direção à de seus agora abastados irmãos. Com a aprovação de seu
líder Verigin, foram todos nus para, em mais uma nova lição das inúmeras
de seus tão tradicionais ensinamentos, mostrar e provar aos outros que,
desprovidos de qualquer espécie de bem material, continuavam sendo, em
essência, os mesmos Doukhobors de sempre e cujas convicções nos
princípios humanitários, extremamente básicos, não haviam de maneira
alguma os deixado se corromper. Aguardavam, assim, com aquele
emblemático protesto pacífico, não apenas por um gesto de ajuda e de
comiseração por parte de seus outros irmãos. O exemplo estava realmente
na essência.
Desejavam em verdade que,
mesmo separados, os Doukhobors não deixassem nunca de ser Doukhobors. A
tentativa, para surpresa do pobre grupo, provocou o impasse com a
questão de uma nova maneira de pensar que surgia e que por fatalidade
não havia como rebater: a regra se manteria filosófica, ética e
moralmente ideal, caso o destino da posse na divisão das terras daquele
desafortunado grupo dos Doukhobors, que então protestava, tivesse,
quando chegaram à América, sido trocado pelo destino do outro afortunado
e agora abastado grupo? Difícil, desde longe no tempo, falar de forma
realista sobre o que pode estimular e levar o ser humano à corrupção
quando a humanidade alega que a lógica no pensamento e no raciocínio
deve seguir o caminho da evolução... Essa antiga “lógica” viria agora a
provocar também a mente dos Doukhobors espiritualistas.
Mesmo com o passar do
tempo, isso pôde se ver que foi apenas em parte. Enquanto a prosperidade
na América do Norte dos anos 1920 continuava a sorrir para o grupo
separado dos Doukhobors, chamado de os “Edinolichniki” (ou
“Independentes”), os princípios e valores morais tradicionais se
mantinham imutáveis na outra parte entre os “Svobodniki” (ou “Filhos da
Liberdade”). A ânsia por liberdade, e por nela se manter, cobrou deles
um preço muito caro: declarando que não iriam se deixar subjugar e que
não mais seriam obedientes ao regime do governo canadense teve como
resultado um ataque à bomba ao trem em que se encontrava, em 1924, e que
fez morrer um dos maiores e mais fiéis líderes (agora o último) dos
Doukhobors, Pedro Verigin, aos 65 anos de idade.
Mais tarde, o destino
cruel dos Doukhobors não poupou a outra parte, que se endividava com
novos e constantes empréstimos bancários para poder manter e aumentar
ainda mais sua produtividade. A famosa quebra da Bolsa de Valores de
Nova York, em 1929, trouxe a eles a inevitável perda de suas frutíferas
terras para poderem honrar, de forma não voluntária, com a quitação
dessas dívidas. Puderam permanecer na terra, mas em troca do aluguel
pago pontualmente ao governo.
Começava a acabar, assim,
não a saga, nem a lenda da Comunidade Cristã da Fraternidade Universal
dos Doukhobors. E junto a suas incongruentes andanças pelo terreno dos
interesses comerciais. Estavam acabando toda uma tradição ideológica.
Com a modernização do sistema político-social russo a partir do fim dos
anos 1980, muitos dos Doukhobors deixaram o Canadá no caminho de volta
ao país de origem de seus ancestrais. Depois, com a maior tolerância em
relação aos costumes entre nações que antes se contrastavam, a maioria
dos Doukhobors pôde mais livremente casar-se com gente de outras etnias.
E estima-se que apenas cerca de três mil e quinhentos Doukhobors, e que
assim se identificam, existam atualmente em todo o mundo. Na Rússia, não
mais do que o pequeno número de 50 deles é conhecido.
O “estranho” hábito de
imitar os Doukhobors, em ficar nu em público (e que historicamente
ocorreu apenas uma vez entre eles), geralmente também em grupo para
chamar a atenção de autoridades, teve o lado idealista original perdido,
mas o lado do protesto em si ficou mantido e só passou a acontecer em
maior número, de forma mais reincidente e principalmente na Europa e nos
Estados Unidos, a partir da década de 1960, quando protestos políticos
por cidadãos de nações em processo de grandes mudanças
politico-sócio-financeiras, ou em conflitos de guerra, embora sempre
legalmente proibidos, causavam maior furor para esquentar a morna
conquista da liberdade de expressão. Hoje, percebe-se que o pitoresco
recurso não de forma contundente funcione. Mas não há dúvida que, de
forma geral ele, nos dias atuais, ainda seja usado para pura e
simplesmente chamar mesmo a atenção. Ou, em países mais desenvolvidos em
sua forma de encarar valores morais que não são afetados ou mesmo
ameaçados pela nudez, o ato não passe mesmo de apenas uma inconsequente
diversão provocativa.
De qualquer forma e com o
total desaparecimento dos Doukhobors batendo à porta, espera-se que os
exemplos no pensamento ideológico desse povo, voltado a manter a
integridade da natureza e do ser humano, a quem passe a ter conhecimento
sobre sua triste e sofrida história, continuem sendo válidos e
respeitados e que influam positivamente no progresso e desenvolvimento
justo da complexa forma de pensar em relação aos hoje esquecidos, e
nunca dispensáveis, reais valores morais desse mesmo ser humano, de seu
corpo e de sua alma. É possível que muitos de nós nos espelhemos neles.
Ou, preferivelmente, no que tem a ver com pelo menos um pouco da
tradicional forma dos Doukhobors entender o sentido da vida. Quanto à
natureza, sábia, esta sempre se virou sozinha.
Conflitos ideológicos à
parte e de forma prática, esperemos também que, num futuro não muito
distante, possamos numa roda de amigos simplesmente tomar outra daquela
cerveja original que veio a provocar um sugestivo protesto. Mas, dessa
vez, de forma muito pacífica e natural, verdadeiramente tranquilos e em
real estado de confraternização, totalmente nus e a preço justo. Sem
exageros no álcool, condição esta que vale também dizer, e com a total e
real aceitação da simplicidade e da naturalidade da nudez por parte de
todos os outros não naturistas que, juntos uns aos outros, compõem uma
não apenas tolerante sociedade. Os Doukhobors tradicionais, admiráveis
guerreiros espirituais, aprovariam.
Fontes:
“Spiritual Origins and the
Beginning of Doukhobor History”
(Origens Espirituais e o
Princípio da História dos Doukhobors),
de Svetlana A. Inikova,
1999
“Several Characteristics
of Doukhobor Society”
(As Diversas
Características da Sociedade dos Doukhobors)
– texto de autor
desconhecido
escrito em 1805 em São
Petersburgo, Rússia
“Story of a Spiritual
Upheaval”
(História de Uma
Reviravolta Espiritual),
de Vasily Nikolayevich
Pozdnyakov, 1908
outubro de 2012
*Doni Sacramento,
colaborador do jornal OLHO NU,
é publicitário, ator
e professor de inglês.
É criador e mantenedor (há
10 anos) de site inteiramente dedicado
à cantora e atriz
luso-brasileira Carmen Miranda
(www.carmen.miranda.nom.br).
donisacramento@hotmail.com