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Jornal Olho nu - edição N°148 - Março de 2013 - Ano XIII

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Uma Releitura sobre Luz del Fuego - 2013

por Paulo Pereira*

 

Faço uma breve releitura sobre a atuação ímpar de Luz del Fuego, que completaria, nesse fevereiro de 2013, seus 96 anos de idade… Dora, a grande protagonista histórica, polêmica, pioneira, inquietante e, por certo, esquiva e atemporal. É até compreensível, embora não seja racional ou justificável, que muitos afoitos, na quase incapacidade de entendê-la, busquem desconstruí-la, acusá-la. Os rótulos são geralmente a obra prima dos incompetentes, dos mal informados, dos oportunistas, que se auto-incriminam por sua superficialidade feita de ignorância, preconceito e desprezo pelos fatos.

 

Focalizo, então, uma obra sucinta e bem construída, escrita pelo homem de letras Thiago de Menezes, sob o título sugestivo de “A Verdadeira Luz del Fuego”, Editora All Print, 2011. Em apenas setenta e uma páginas, Thiago consegue descrever, numa síntese rigorosa, a vida incomum de Dora Vivacqua, a minha velha amiga Luz del Fuego. Nas orelhas do livro, Baby Garroux salienta aspectos ricos do autor e de sua obra… Garroux confessa sua amizade pessoal pelo autor, afirmando que seus estudos, sobre personagens de nosso mundo, invadem nosso coração e alma. Luz del Fuego, observa Garroux, é a verdadeira mulher que, sozinha, dirigia palavras ao invisível, moça de asas de borboleta, que muitos não conseguiriam entender… É que esses bons moços, diria eu, só conseguem ver as lagartas, fragmentos que rastejam, em vez de pétalas em movimento, luzes atemporais. Como diz Garroux, há quem (tristemente a maioria) não saiba distinguir etapas, sair de estágios primários ou intermediários.

 

Img: http://filtrodesonsesonhos.blogspot.com.br

O autor do livro “A Verdadeira Luz del Fuego” em frente à Ilha do Sol, no Rio de Janeiro

Clevane P.A. Lopes, escritora consagrada, no prefácio, sublinha a importância da preservação da Memória, recordando que os que partiram não morrerão de fato, pois suas vidas, suas palavras e suas ações serão lembradas por quem as traz a lume… E Dora, enfatizo, é reconhecidamente incomum, brilhante até na rebeldia, luz perene, sempre lembrada. A poetisa Clevane anota: “Símbolo de liberdade, a lutar contra os vendavais preconceituosos, Luz del Fuego foi pássara corajosa de altos voos, interpretados como rebeldia desde tenra idade. Como sabemos, quando a tempestade se inicia, as aves altaneiras não lutam contra os ventos, viram-se de costas e se deixam flutuar”… Como salienta Clevane, Thiago, ao falar de Luz del Fuego, sobretudo, quer desvendar os mistérios, afastar véus, fazer perceber, afinal, o mito da mulher nua a dançar com cobras… Thiago, registro aqui,

Img: comunidade

bancodoplaneta

Capa do livro de Tiago de Menezes lançado em junho de 2011

vem juntar-se, de forma preciosa, a outros talentos, pelo menos: Cristina Agostinho (“Luz del Fuego, A Bailarina do Povo” – 1994) e Agnaldo Silva e Joaquim Vaz de Carvalho (“Luz del Fuego – Codecri), todos ilustres biógrafos de Luz. Thiago comenta, por exemplo, que Antonio Vivacqua, pai de Dora, é assassinado em 1932. Com apenas quinze anos, Dora sentia-se meio sufocada em Cachoeiro e nem mesmo Vitória, a capital, lhe era conveniente. Sentia-se aborrecida pelo uso do sutiã e desfilava, em Marataízes, de calcinha e bustiê improvisado com lenços, efetivamente quando o chamado biquíni estava longe de ser conhecido… Thiago faz extensas considerações e, citações, tendo por base o livro “A Verdade Nua”, escrito por Luz. É estranho, no mínimo, embora possamos imaginar as grandes razões não tão bem ocultas, que muitos tentem ignorar a trajetória inovadora, pioneira e corajosa de Luz. Pior ainda, que agora, no século XXI, alguns delirantes procurem distorcer fatos comprovados e datados, no intuito de ofuscar o brilho dessa mulher incomum, fora da jurisdição do mundo, como eu já escrevi.

 

Img: Carolina Thiebes

Equipe do jornal OLHO NU visita a Ilha do Sol em 2011

No pequeno capítulo, chamado “As ideias naturalistas e o nudismo de Luz del Fuego”, Thiago destaca que, no início da década de 50, os ideais naturalistas de Luz (vegetarianismo e nudismo) começam a ser divulgados. Perturbada até pela polícia por estar nua na praia da Joatinga, e presa, Luz teria percebido, inclusive, que a prática do nudismo poderia assegurar-lhe maior evidência… Na página 55 de seu livro, Thiago, falando da ilha Tapuama, Rio, afirma, categórico: “O primeiro reduto naturista da América Latina, a Ilha do Sol, iria abrigar o chamado Clube Naturalista Brasileiro, criado por Luz, e registrado sob nº 3517 no Registro Civil de Pessoas Jurídicas”. Anotemos, mais uma vez, e evitemos disparates e até tentativas pueris de desacato histórico e de tola usurpação… O Naturismo Brasileiro nasce, pois, no Rio de Janeiro, desde 1949, e concretamente com a fundação da Ilha do Sol, por Luz del Fuego. Isso é história! Na mesma página 55 de seu livro, Thiago de Menezes anota: “Em 1955, a Federação Naturista Internacional (INF-FNI) reconhece oficialmente o surgimento do Movimento Naturista no Brasil, relacionando a Ilha do Sol e o Clube Naturista Brasileiro, que teve seu auge de 1955 a 1961, como um de seus afiliados”. O naturismo rico do Brasil é mais antigo, e documentado, do que alguns tentam imaginar, o que deve ser motivo de orgulho de todos os verdadeiros naturistas, sem qualquer viés pessoal ou sectário.

 

Luz se apresentava em teatro de revista semi-nua com cobras como parceiras de cena

Na chamada quarta capa do livro, Thiago volta a sublinhar aspectos e facetas de Luz, dizendo que ela, oriunda da imigração italiana, natural do Espírito Santo, costumava mostrar-se seminua em circos e teatros, nos anos 40 e 50, com uma ou duas cobras enroladas ao corpo… Ela não fumava nem bebia bebidas alcoólicas. Thiago, então, escreve: “É fato que seu legado permanece até hoje, e o chamado Naturismo Brasileiro tem grande orgulho de ter Luz del Fuego como uma de suas personagens históricas”. Thiago, de passagem, observa que os pensamentos de Luz podem parecer, para muitos, meio utópicos e até românticos, algumas vezes, talvez, em choque frontal com as atuais bandeiras de luta da filosofia do Movimento Naturista, do qual ela, Luz, foi a grande precursora no Brasil… Embora essa última afirmação me pareça vaga, pois não se consegue perceber de pronto que os pensamentos essenciais de Luz entrem em qualquer choque efetivo com a chamada filosofia naturista (que conheço há sessenta anos), vale reafirmar que o processo naturista está vivo, em marcha, prestigiando raízes e fundamentos, mas certamente tornando-se mais rico com o passar do tempo, o que é natural, até porque as mentes não são, felizmente, sempre unânimes em tudo.

 

Img: Paulo Pereira

Luz e com um amigo na Ilha do Sol em foto publicada na revista Freies Leben, edição 127, em 1965

Por outro lado, na qualidade de velho naturista, amigo modesto de Luz, penso que devo enfatizar o que tenho dito, e sobretudo escrito, de longa data. Conheci pessoalmente Dora, a Luz del Fuego, como correspondente credenciado da famosa revista naturista alemã “Freies Leben”, na Ilha do Sol, em 1965, em plena vigência do falado Regime Militar de 64… Eram tempos bicudos. Eram tempos trevosos, de arbitrariedades, de rancores, de violência gratuita, de crueldade, de muitas noites mal dormidas, de tensão e depressão, tempos angustiantes e muito difíceis de relembrar, mas a prática naturista, embora restrita, foi sempre mantida e até recebeu novos impulsos, novos adeptos, inclusive com a criação, oficialmente em 1969, da A.N.B. – Associação Naturista Brasileira, registrada na I.N.F. (em seu Boletim – 1969), sucessora da F.N.I.B., criação e direção de Daniel de Brito. Anotemos.

 

Img: arquivo D. Risseto

Capa da revista da DFK-Federação Naturista Alemã, anos 50, com foto de Luz del Fuego

Na minha primeira visita à Ilha do Sol, ao chegar, fui recebido por Luz e por Edgar, velho servidor. Fiquei meio apreensivo diante da presença de muitos cães e tratei de falar com Luz, que gentilmente procurava me acalmar, dizendo claramente que, entrando na ilha despido, eu não seria mordido… E felizmente deu tudo certo. Apresentei a ela, então, minha credencial da revista e começamos uma longa conversa, enquanto Luz me mostrava toda a ilha, as construções e benfeitorias existentes. Tapuama é uma pequena ilha com muitas rochas meio amareladas e cinzentas, cercadas por vegetação pouco densa. Mas era um local arejado, limpo, agradável, com jeito de recanto livre, natural, uma gostosa mistura de mar e mato. Convidado para o almoço, prossegui observando o talento de Luz na cozinha, e sua presença ao mesmo tempo doce e forte, pele morena, a longa trança escura como se fosse uma índia dos tempos modernos… Depois do almoço, ouvimos os apitos de duas pequenas embarcações repletas de turistas, que se aproximavam da ilha. Luz apressou-se a atender ao chamado, e fui com ela até o alto de uma pequena rocha, de onde saudamos os visitantes por longos minutos, tudo registrado por dezenas de máquinas fotográficas, apontadas por barulhentos e sorridentes turistas. E falamos da carência de recursos econômico-financeiros do Clube do Sol. Luz andava muito preocupada em conseguir o apoio para seus projetos de ampliação e conservação na ilha. Foi focalizada igualmente a prevalência de muitos preconceitos e tabus em relação à nudez e ao sexo, o que parece ser doença crônica da sociedade majoritária… Finalmente, chegou o momento, naquela tarde ensolarada, de registrar minha visita através de algumas fotos em preto e branco, que seriam enviadas, com meu texto, para a Alemanha, para publicação no nº 127 de Freies Leben. Uma dessas fotos, felizmente hoje recuperada, foi publicada por mim no meu novo livro, de 2011, “Sem Pedir Julgamentos”, na página 119 (Ilha do Sol, Luz del Fuego, 1966). Depois de todos esses registros, afinal, quem é a grande protagonista? O que se entende, de fato, por pioneirismo? A grande protagonista, independentemente disso agradar a todos, é comprovada e inegavelmente Dora Vivacqua, a Luz del Fuego, morta covardemente em 1967. Luz é a grande pioneira, a grande protagonista, a grande precursora, a primeira referência datada.

 

Img: Arquivo de Paulo Pereira

Na mencionada década dos anos 1960, voltei algumas vezes à famosa Ilha do Sol, onde tive o privilégio de conhecer o notável companheiro Terson Santos, jornalista brilhante da Agência Nacional, antigo amigo de Luz, outro batalhador histórico do naturismo. Nessa ocasião, outros dois nomes ilustres foram lembrados, prestigiados: Daniel de Brito e Osmar Paranhos, que também foram conselheiros de Luz e fundadores do Clube do Sol. Juntamente com Daniel e Paranhos, participei concretamente da lenta construção do Naturismo Brasileiro, de forma documentada, desde, pois, os anos 1960. Isso é história!

 

Nas várias edições dos meus livros, “Corpos Nus”, “Naturalmente” e “Sem Pedir Julgamentos”, desde o ano 2000, especialmente, tenho me referido enfaticamente, e com muita razão, ao nome de Dora Vivacqua, a saudosa Luz del Fuego. Minha luta, feita de coerência, de respeito, de reconhecimento e de historicidade, é antiga, pois, e certamente merece uma boa percepção e reflexão. É efetivamente expressiva a quantidade de páginas escritas por mim sobre Luz del Fuego, o que, de certa forma, pode ser entendido como registro, ou releitura, da biografia de Luz, que foi um exemplo de pioneirismo, de coragem, contra intolerâncias, preconceitos, dogmas irracionais, e puritanismo hipócrita. É indispensável fazer a leitura correta, isenta, humanista, da vida de Luz (de Dora). Os bons naturistas devem cultuar a memória, as raízes históricas do Movimento, lutando pelas liberdades individuais plenas, sempre contra o racismo resistente, a intolerância religiosa, o desacato à cidadania (e à História), o preconceito social e sexual. É urgente perceber, como coloca Zuenir Ventura (O Globo – 26/01/2013) que preconceito não é simples mal-entendido, fazendo do Brasil, por exemplo, “um país com racismo, mas sem racistas”, um país com seminudez (e até nudez) nos palcos e no carnaval, mas sem nudistas conscientes, um país tido como permissivo, mas um país onde se matam os gays frequentemente… Luz del Fuego morreu, sobretudo, porque incomodava, vivia a Verdade Nua! Pensemos bem nisso.

 

Img: arquivo JON

Luz costumava receber jornalistas em sua ilha

No meu livro “Corpos Nus, Verdade Natural”, 2006, no capítulo do Naturismo Brasileiro, págs. 126, 127, 129, 224, 225, 226, por exemplo, escrevi: “Para os que andam por aí, meio perdidos, procurando certamente ver Luz del Fuego com lentes desfocadas, aconselho respeito e melhor informação”… Em seguida, reproduzi, em inglês, o texto da credencial de “Freies Leben”, a mim conferida, solicitando uma reportagem, e artigo, sobre Luz del Fuego, em 30/09/1964. Isso é história! Eu acrescentei ainda que “Luz del Fuego morreu em 1967. Ela morreu e tudo acabou? Tão simples e tão conveniente assim?… O naturismo no Brasil não morreu com a morte de Luz, em 1967, todos reconhecem; não ocorreu nenhuma interrupção; não houve jamais qualquer diáspora ou dispersão… E, no capítulo dos depoimentos, transcrevi palavras sábias de Luz: “Deus! Deus! O Deus que sempre imaginei não é esse que se vê em imagens pelas igrejas… O meu Deus é diferente; sua imagem está construída dentro de minha alma. Ele existe, me anima, me conforta… As ideias sobre a falsa educação, sobre o Nudismo e suas ligações com o problema sexual foram sempre motivo de minhas constantes cogitações e estudos”. E, então, eu acrescentei, como comentário: Dora Vivacqua (Luz del Fuego) jamais foi dissimulada ou subalterna. Pioneira incontestável do Nudismo-Naturismo do Brasil, como a História atesta fartamente, selecionou e plantou a semente autêntica do Movimento entre nós, e sempre soube cultivar a tenra árvore naturista até 1967, quando seus melhores seguidores deram prosseguimento ao seu trabalho. Consagrada como Madrinha da Rio-Nat, Luz é a pioneira que se impõe por sua própria figura, por suas ações claras e corajosas. Agora, no sono do tempo, como inteligência extrafísica, Dora certamente está podendo ver, e ouvir, o Deus infinito, sem fantasias antropomórficas, meramente religiosas ou convenientes. Luz del Fuego vive!

 

Img: Arquivo de Paulo Pereira

Capa da revista Rio É, publicada pela extinta RioNAT na década de 90

O meu segundo livro, “Naturalmente, Um Perfil Documentado”, 2008, registra várias fotos e textos históricos preciosos de Luz, o grande ícone do Naturismo Brasileiro, a exemplo da primeira edição da revista “Brasil Naturista” (criação de Marcelo Pacheco e Carina Moreschi, 2007). No meu livro “Naturalmente”, o nome de Luz, e sua obra, estão consagrados nas páginas 52-56, 65-70, 76, 94-95, à disposição dos estudiosos. Por acréscimo, relembro palavras de Sergio Oliveira, fundador da Rio-Nat, editor da revista “Rio-É”, vice-presidente da F.Br.N.: “Este ano desponta como sendo o ano de Luz del Fuego. Talvez já fosse hora da Associação elegê-la patronesse… Quem sabe de onde ela está consiga ver que as sementes lançadas nos idos de 1950, de amor à natureza e respeito por todas as formas de vida medraram e crescem cada vez mais. Nossa capa é uma modesta homenagem àquela que tanto representa para o Naturismo no Brasil. Ao comemorarmos nosso 5º aniversário, elevemos nosso pensamento e nossas preces para a nossa Madrinha”… O testemunho afirmado de Sergio não é uma fantasia, uma peça decorativa, mas sua firme convicção e reconhecimento. Isso é história!

 

Img: arquivo JON

Luz com amigos posando na Ilha do Sol

Finalmente, no meu livro “Sem Pedir Julgamentos, Conforme a Natureza”, anoto considerações pertinentes a respeito de Luz, especialmente às páginas 25-29. Na página 26, escrevo o seguinte: “Na obra de Aguinaldo Silva e Joaquim Vaz de Carvalho, ainda na introdução, o recado está dado: “Sim, é preciso resgatar o cadáver de Luz del Fuego e dar à sua morte as características simbólicas que então lhe negaram”… Luz é símbolo que se faz eterno, atemporal. E isso incomoda os pseudossábios, príncipes da mediocridade pernóstica… O assassinato de Luz é, sobretudo, como diz Aguinaldo Silva, um assassinato cultural! E o meu velho colega dos bancos escolares, o cineasta David E. Neves escreveu nas orelhas do livro de Aguinaldo e Joaquim: “Joana d’Arc na fogueira, Lola Montés, Luz del Fuego. Estou chegando ao fim de uma aventura artístico-sentimental de alta intensidade e os reflexos nos diversos espelhos d’alma começam a faiscar nesse início de montagem… Adorei esse material bruto, ávido de lapidação. Na verdade, sou apaixonado por minha Luz del Fuego. Amo de paixão, amo sem perdição essa criatura louca e generosa, agridoce, grosseira e suave, inesquecível na sua verdade e virtualidade”… A nossa estimada Luz del Fuego, amigo David, eu diria, não morreu sem razão, sem consequência, pois não se apaga uma luz atemporal. A velha musa naturista do Brasil, Dora, Luz do Fogo Sagrado da Vida, Madrinha da Rio-Nat, pioneira nudista e feminista, humanista apaixonada, precisa ser, afinal, percebida em toda a sua dimensão extraordinária, fora da comum jurisdição do mundo, repito.

 

Img: arquivo JON

Luz e amigos em almoço naturista na Ilha do Sol

O Naturismo Brasileiro não é filho de proveta; o Naturismo Brasileiro tem identidade histórica, tem mãe conhecida, datada, corajosa, audaciosa, e já nasceu afirmado.

 

Em tempo: Enfatizemos, a bem da verdade, que a vida de Dora Vivacqua (Luz del Fuego) foi, sobretudo, uma luta libertária, valorizando os gritos legítimos da alma, os apelos naturais do existir. No segundo capítulo de meu livro “Sem Pedir Julgamentos”, 2011, eu reafirmo conceitos e posturas respaldados pela história, lembrando que não cabem jamais meras adjetivações aos termos “naturismo” e “naturistas”, por exemplo, o que seria uma descaracterização. A prática nudista-naturista, inclusive difundida por Luz del Fuego, tem caráter universalista, sem compartimentos ou guetos. É indispensável, assim, não sofismar, não inventar pretextos nem tentar construir artifícios convenientes ou protagonismos vazios, no culto enfermo de vaidades descabidas. O nudismo-naturismo é prática centenária documentada, plena de simplicidade, de fartos exemplos de dedicação idealista, nobre. Sabemos que alguns viajantes do oportunismo, longe de qualquer rica dialética, buscam antíteses fabricadas, maniqueístas, tentando dar vez e voz a sectarismos. Contudo, a prática naturista bem concebida não deve se dividir ou fragmentar. Luz del Fuego é um exemplo forte, histórico, incomum, de que o sonho lúcido pode vir a ser realidade.

 

Como bem disse o confrade Edson Medeiros, ser naturista é tornar-se mais receptivo, mais feliz, mais predisposto a reflexionar sobre os valores que norteiam a nossa existência; a partir do momento em que você rompe esse imenso tabu, que é a nudez, o seu corpo abre-se para o infinito… E eu acrescento que, se muitas lições foram perdidas, restam o bom senso, a força de nossos instintos e a sabedoria da natureza, até porque a verdade natural (a verdade nua, como disse Luz) não pode ser ignorada nem, menos ainda, misturada a crendices.

 

Img: baixaqui

Cachoeiro de Itapemirim, cidade natal de Dora Vivácqua, a Luz del Fuego

Cabe ainda mais um registro importante: a “Revista O Globo”, em 03/02/2013, publica uma extensa reportagem sobre Cachoeiro do Itapemirim, sob o título de “Direto da Fonte”, de autoria de Mariana Filgueiras, salientando os ilustres nomes de alguns filhos de Cachoeiro e, sobretudo, a falta de memória de muitos cidadãos. Nessa reportagem de capa, comenta-se que a artista plástica Gracinha Sabadini faz bonecos de barro, que são frequentemente expostos na Cafeteria Mourads; e que o boneco que faz mais sucesso é o de Luz del Fuego, outra “ilustre desconhecida” em Cachoeiro, como diz a matéria… Mariana, a repórter, anota: “Nascida em 1917 como Dora Vivacqua, ela se tornou famosa como atriz e cantora por se apresentar nua, vestindo apenas uma serpente viva… Precursora do Naturismo e ícone do feminismo, no Brasil, Luz del Fuego tampouco tem uma referência na desmemoriada cidade capixaba. O que resta da sua história por lá é um restaurante self service da família Vivacqua, que preferiu não participar da reportagem”. Fica, então, reafirmado concretamente, mais uma vez, que alguns ilustres desmemoriados tentam apagar a rica história de Luz del Fuego, o que certamente nos autoriza a afirmar, como disse Aguinaldo Silva, que a morte de Luz não é um mero caso de polícia, mas um assassinato cultural. Ao lado de uns poucos autores lúcidos, tenho lutado pelo prestígio da verdade histórica, mostrando, sempre de forma clara e documentada, que Dora Vivacqua é de fato e de direito a grande protagonista do feminismo e do Naturismo no Brasil.

 

Luz del Fuego - clipe raro de 1949, dançando com cobras - matéria exibida na TV Globo, em 1981

 

Seria interessante perguntar, aqui e agora, quem tem medo da Verdade Nua? Quem tem medo de Luz del Fuego? Quem tem medo, afinal, da rica historicidade do Naturismo Brasileiro? Luz del Fuego, corajosa e consciente, observou que “num mundo que está progredindo dia-a-dia, os preconceitos continuam amarrados a um poste”… A prática naturista, essencialmente natural como aponta Welby, e fator transformador como propõe Evandro Telles, pede respeito à história, às sólidas origens nudistas, como enfatizou Obergfell, na certeza de que “somente com o retorno às nossas raízes saberemos assegurar a permanência de um naturismo sereno”. É tempo de somar, de prestigiar a grande pioneira Luz del Fuego, buscando a percepção profunda e isenta. Lembremos, aqui e agora, que a mera informação, por exemplo, muitas vezes distorcida, não é sinônimo de sabedoria.

 

É urgente e indispensável perceber, buscar, entender, mudar. A percepção mais rica supõe sempre o livre trânsito, o estudo atento, o escancarar igualmente de portas e janelas e a procura tranquila do conhecimento. A humanidade está bastante cansada da construção repetida de vozes dissonantes, de polêmicas fabricadas, em vez do prestígio inteligente da verdade, da memória e da ciência.

 

Matéria do programa Fantástico da Rede Globo, em 1994. Arquivos de Doni Sacramento

 

Luz del Fuego tem história datada, repito, e é realmente um ícone, uma luz que se faz atemporal. Tentar ignorá-la ou menosprezá-la é atestado público de ignorância, de incompetência ou de má fé. Sabemos todos que alguns incapazes, ao longo dos tempos, buscam muitas vezes, inclusive de forma disfarçada, destruir símbolos, registros, histórias vivas, vultos, estátuas e ícones: são os conhecidos e tristemente famosos iconoclastas, que querem a destruição, sobretudo, para obter proveitos, mas esses iconoclastas não são historiadores nem estudiosos ilustres. O ser humano, e o naturista em particular, precisa(m) perceber claramente o valor das raízes históricas, até porque o ser humano nunca foi um anjo nem consegue ser um deus: o Universo nos limita sempre.

 

O assassinato de Luz del Fuego, repito mais uma vez, foi um crime cultural… Saibamos, então, enxergar a Verdade Nua, verdade essa proclamada e vivida por Luz del Fuego, sem medir riscos pessoais, sempre com coragem de índio…

 

Paulo Pereira

Março/ 2013

Escritor, tradutor, biólogo,

o naturista mais antigo do Brasil.


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