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Jornal Olho nu - edição N°150 - Maio de 2013 - Ano XIII

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Corpo – Imagens Fragmentadas

por Paulo Pereira*

 

Parece que uma velha pergunta persiste: o que, afinal, cada um de nós consegue ver quando se olha no espelho? Temos uma impressão diferente a cada vez? Quantas imagens conseguimos identificar de nós mesmos ao longo da vida, esse reino de metamorfoses segundo Maupassant? O corpo humano, de resto meio enigmático, como nos lembrou Jorge Bandeira, talvez configure um inquietante mosaico, um amálgama de imagens fragmentadas, sobretudo, eloquentes. Os corpos nus, verdade natural, como eu tenho sublinhado, são nossa realidade física, nosso traje de nascença, nossa identidade objetiva, o que dispensa julgamentos subjetivos. Infelizmente, uma concreta maioria, através dos séculos, busca construir divisões, dissonâncias, meias-verdades, fragmentos, paradoxos.

 

Em sua edição de dezembro de 2009, nº 184, a celebrada revista “Trip”, sempre criativa e de bom gosto gráfico, destaca muitas facetas do corpo humano vivo, ativo, concreto, sob o título de “Corpo, o que você quer do seu?”… Em suas 120 páginas, a proposta é proporcionar, talvez, uma percepção inteira através de um desfile de aspectos interessantes, ressaltando “um surfista que virou mulher, uma psicóloga que virou homem, um personal trainer que engordou, um repórter que saiu do corpo e, finalmente, um naturista setentão”… E esse naturista setentão sou eu, Paulo Pereira? Dizer o quê? Dizer que me vejo com serenidade, com a serenidade que aprendi no curso de uma longa trajetória, com a certeza objetiva da tarefa bem realizada, embora ainda não concluída, e a consideração de que nossa vida pode se tornar mais rica a cada dia…

 

O nosso corpo, de resto sempre nu e natural, merece uma grande reflexão. O que devemos pensar das chamadas fragmentações do corpo, do corpo natural e do corpo-objeto, do corpo profano, instintivo, e do corpo dito sagrado? Corpo fragmentado ou corpo inteiro?…

 

Recentemente, por exemplo, uma jovem leitora da revista “Trip” fez contato comigo, querendo saber, antes de tudo, o que é ser naturista, andando nu em casa, rasgando rótulos e enfrentando tabus… É fundamental, respondi, perceber que a prática nudista-naturista começa na mente, buscando a naturalidade, a simplicidade, a nudez como verdade, como identidade, sem desculpas ou artifícios, mas sempre no prestígio do conhecimento, dos fundamentos histórico-filosóficos do Movimento. Ser nudista-naturista é viver conscientemente como a natureza quer. Mas o corpo humano tem sido despido e vestido segundo modas, caprichos, hipocrisias, mitos, dogmas, interesses culturais, econômicos. É essencial, aqui e agora, que façamos as distinções, separando, sobretudo, verdade e mito. São inúmeros os olhares sobre o corpo, tema fecundo e múltiplo que proporciona volumes, até enciclopédias… Mas o foco básico parece ser o encontro, ou confronto, entre natureza e cultura, entre ciência e subjetividade. Mais uma vez, corpo natural e corpo sagrado, sobrenatural…

 

O corpo pode ser, então, o chamado “espelho da alma”? Conhecer as verdades, ou lendas, humanas torna-se uma arte, uma sabedoria, que o tempo pode proporcionar, ou propor, mas há, e haverá, controvérsias. É, entretanto, irrecusável prestigiar um olhar respaldado, perceptivo, como tenho procurado salientar em meus textos, a respeito do corpo, do natural, em vez do olhar vesgo, nublado, comprometido. Segundo textos religiosos, as chamadas manifestações corporais não dominadas são condenadas… Os instintos, provados pela ciência, são inferiores, deletérios? Afinal, o ser humano é um anjo imortal, mas que necessita respirar, beber água, comer, andar, urinar, defecar, copular e morrer? Sem água e sem alimento, recordemos, ninguém vive, e os homens evidenciam sempre a memória da sede e da fome. As páginas da História resgatam as necessidades efetivas do bicho-homem… Nudez, sexo e libido, como ficam? São meros acessórios? Consideremos as raízes das tolerâncias e das repressões, por exemplo. Há sexualidades alternativas? O que diríamos do concubinato, do adultério e da prostituição? E sobre a masturbação (o onanismo), a zooerastia, a bissexualidade, a homossexualidade? A realidade científica se impõe! Ninguém, em sã consciência, pode ignorar a seleção natural ligada ao sexo, o DNA, o genoma humano. A dita Idade Média já é passado distante, embora muitos não percebam a realidade…

 

A religião, e igualmente muitos poderes seculares sempre se mobilizaram para reformar o chamado corpo social culpado pelos “pecados contra a natureza”… Contra a natureza? Os instintos não são naturais? O onanismo, por exemplo, é chamado de “vício solitário” ou de “pecado de Onam”… Seria indispensável melhor conceito de vício e de pecado, sobretudo. Em 1682, segundo Sara Matheus-Grieco, algumas instruções aos confessores apontavam as fantasias eróticas e a masturbação como pecados mortais… E, ao arrepio da natureza, e da ciência atual, até médicos (séculos XVII e XVIII), como Edward Baynard, aconselhavam os banhos bem frios para “combater a impotência causada nos jovens pelo maldito vício escolar da masturbação, que enfraqueceria o adulto e seus genitais”… Uma demência, uma ignorância agressiva, as meias-verdades como grandes mentiras, como intolerâncias. Sara Grieco, historiadora, observa: “Para os teólogos, a copulação de uma mulher com outra mulher era considerada como uma transgressão classificada entre os outros crimes ligados à luxúria, como a masturbação, a bestialidade, o coito numa posição ‘contra a natureza’, e a sodomia”. As “bruxas” já são caçadas de longa data… Reafirmo, como biólogo e naturista, que a natureza não pede julgamentos! Insuportável, admitamos, é pretender insistir, no século XXI, nas mesmas premissas ou conclusões medievais, entendendo o sexo como imoral, os instintos como deletérios, a sexualidade como exercício do vício e do dito pecado. A natureza conhece o pecado?… Ciência é terreno sério no qual não se plantam meras inverdades, tolas elucubrações ou mitos convenientes. Crendices e disparates de falsa erudição não rimam com o bom conhecimento, com a verdade científica. É irracional, para dizer o mínimo, correlacionar o sexo diretamente com o imoral, e com o propalado pecado, sem esquecer que grande parte da humanidade tem ideia definida de um deus antropomórfico, até mesmo de um deus encarnado… A ciência, ao contrário, não costuma promover o culto das utopias.

 

Anotemos com ênfase que o corpo humano, repito, enseja múltiplos olhares, imagens diversas, talvez fragmentadas… O olhar religioso mostra-se frequentemente incoerente. Como observa Alain Corbin, o Cristianismo é a religião da encarnação, até mesmo da reencarnação, mas discursa contra o corpo e os instintos biológicos, certamente incentivando os efeitos dos chamados “olhares cruzados sobre o corpo”… Corbin anota que Afonso de Ligório escreveu: “De nossos inimigos, o maior é o nosso corpo”!… A virtude consiste, em suma, em contrariar a natureza? É essencial, e virtuoso, negar o corpo, vesti-lo pesadamente por inteiro? A virgindade e a continência são joias preciosas? Até quando, no século XXI, teremos que aturar sofismas, delírios, ascetismos fabricados?… Busquemos a razão, o olhar perceptivo!

 

Henri Zerner, professor de História da Arte, de Harvard, cita Delacroix, sobre um dossiê de desenhos e fotografias: “Fico olhando os desenhos; olho com paixão e sem cansaço essas fotografias de homens nus, esse poema admirável, esse corpo humano com o qual aprendo a ler”… Zerner observa que Delacroiz examina fotografias e enxerga corpos, poemas, algo que se faz legível e expressivo de si mesmo, o corpo despido e inteiro, e um reflexo da alma? Nudez natural e emoção.

 

"A barca de Dante" - obra de Eugène Delacroix 1822

Nas artes, visões do corpo nu, revelação de contornos, o corpo livre de ocultações concretas, de vestes, de máscaras dúbias. Henri Zerner anota: “O nu nunca foi tão cultivado como no século XIX e, na vida cotidiana, por outro lado, nunca foi tão zelosamente ocultado, sobretudo o corpo de mulher”… Censura e revelação, o proibido e o desejado, o pudor hipócrita consagrado. Mas o corpo nu tem sido sempre, através dos séculos, o motivo central, o foco, para importantes criações artísticas. É ainda Henri Zerner que comenta a respeito da representação do nu: “William Blake, particularmente, traz algo de muito novo à visão do corpo: na grande tradição do misticismo, ele cultiva uma espécie de sensualismo espiritual… Blake preencheu, com uma estranha sensualidade, corpos gloriosos de uma humanidade heroica… O mundo de Blake é povoado de seres totalmente inventados, porém dotados de uma estranha energia”… Blake, que nos falou da simetria atemporal dos tigres, reveste a nudez com névoas de beleza pura, nos convida a sonhar e, como T.E. Lawrence, a fazer do sonho uma realidade reafirmada. As artes são caminhos criativos de encontrar a verdade.

 

A sexóloga Rose Marie Muraro afirma "o corpo é sexuado e não angelical"

E a verdade natural ignora as construções e usos do corpo enquanto mero objeto ou acessório. Na natureza, a nudez é dado primeiro, como afirma R. Muraro, e o corpo é sexuado e não assexuado, angelical… Anne-Marie Sohn anota: “Se os corpos nus fazem parte, hoje, de nosso quadro cotidiano, isto se deve à erosão progressiva do pudor, durante muito tempo inculcado como virtude desde a primeira infância e reforçado para as filhas na adolescência”… Mas é preciso sublinhar que muitos se esforçam para criar e manter máscaras, idealizações pudicas e até capas santas. Normalmente, a sociedade majoritária, hipócrita, atua como guardiã das censuras, geralmente utilizando discursos teológicos, religiosos, acabando por tentar isolar a nudez, o sexo, a sexualidade, que muitas vezes viram produtos para consumo, incentivando a pornografia e o preconceito. Na verdade, o indivíduo merece o respeito à sua identidade, ao seu corpo, e até mesmo uma gestão cientifica do sexo, da sexualidade, do corpo, afinal, libertando, então, a sexualidade, dissociando sexualidade e reprodução, por exemplo. O ser humano não tem cio; o ser humano tem direito à liberdade e ao prazer! E o primeiro grande passo a ser dado é o do combate consciente e aplicado a todas as formas de violência, o que inclui, de pronto, a rejeição do racismo, da pudicícia dogmática, da homofobia, da ignorância científica, da pseudociência, dos modismos convenientes…

 

Quando falamos em liberdade, em combate à violência, impõe-se o registro do acontecido à humanidade, ao corpo humano, nas guerras, nos campos de concentração: massacres, torturas, a nudez ultrajada!

 

O corpo humano, ratifiquemos, é o sítio do prazer e da dor, e talvez por isso busca-se isolá-lo, censurá-lo, revesti-lo de capas e máscaras… O corpo é o campo do combate; e toda experiência de guerra é, antes de tudo, experiência do corpo, como escreveu Stéphane Audoin-Rouzeau. Os corpos, afinal, produzem e sofrem as violências… Corpos tensos, corpos cansados, corpos feridos, corpos enfermos, corpos mortos. As guerras desumanizam, humilham, revelam sombrias facetas do bicho-homem. As violências, todas, tendem a coisificar, a destruir a identidade do homem; o corpo vira uma coisa, um objeto frágil. Annette Becker, professora de História Contemporânea (Universidade de Paris) afirma: “O campo de concentração é basicamente um espaço que visa a bestialização ou a coisificação dos prisioneiros, que recebem o nome de “pedaços”, vermes, ratos. A fome, tal como o trabalho, tem primordialmente essa função”… O corpo está ultrajado, fragmentado, desprezado. Annette anota: “O nome da pessoa, marca da identidade, é substituído pelos números de matrícula… Desumanizam-se os homens e as mulheres por marcas impostas a seus corpos: ou se tira alguma coisa do preso, raspando os cabelos e os pelos do púbis ou, no caso de Auschwitz, acrescenta-se algo, pela tatuagem do número no antebraço”… Corpos nus despojados de dignidade, expostos friamente, as câmaras de gás como destino… E, no final da guerra, os campos de concentração libertados pelas tropas inglesas e americanas, os cadáveres insepultos como testemunhas do horror, da crueldade que só o bicho-homem conhece! E esse ser humano, paradoxal, ainda é chamado de imagem e semelhança de Deus, do deus a que Rakover, patético, se dirige, à beira da morte, nos escombros do gueto trágico de Varsóvia. Dizer o quê? Dizer o que muita gente não conseguiu falar, o que muita gente não quis falar, inclusive as eminências e as santidades no conforto de seus palácios…

 

O corpo natural, que nasce nu e livre, pelo sexo, pelo desejo, pelo amor, sem pecado, não pede julgamentos. O corpo é a nossa identidade, que fala mesmo em silêncio. No vasto caleidoscópio da vida, imagens fragmentadas e reconstruídas, o corpo é o sítio por excelência, repitamos, do prazer e da dor, do ódio e do amor; mais do que um enigma, afinal, o nosso corpo é nossa certeza, a grande certeza em meio a tantas incertezas… Mas essas incertezas não devem ser pretexto para desconstruções. Quando falamos do homem, como um conjunto de corpo e alma, quase sempre propondo a unidade, a integração, precisamos priorizar a coerência. A desconstrução do corpo, ou sua descabida fragmentação, aponta para uma concreta inviabilidade. Devemos, pois, edificar, construir, somar com o diferente também, valorizar a realidade sem o uso de atalhos mal concebidos. O homem, corpo e alma, precisa perseguir o integral em lugar do fragmentado; a vida é síntese inteligente. O ser humano, que nasce inteiramente nu e que sabe que um dia vai morrer, não deve complicar sua existência: basta seguir seu instinto, sua inteligência, e viver conforme a natureza…

 

Paulo Pereira

Maio/ 2013

Escritor, tradutor, biólogo,

o naturista mais antigo do Brasil.

Membro do conselho Consultivo da FBrN


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