Vida e Castigo
por Paulo Pereira*
Antes
que sejamos todos meio engolfados pela balbúrdia das festas de fim de
ano, penso que talvez seja oportuno, e proveitoso, um pouco de reflexão
sobre a vida, sobretudo, a vida humana e os castigos, as punições, as
intolerâncias, os egoísmos culturais.
Faço, então, breve
releitura das palavras e pensamentos do notável e corajoso mestre
Jean-Marie Guyau, especificamente do que está escrito em sua “Crítica da
Ideia de Sanção”, Editora Martins Fontes. Já no dizer de Regina Schöpke,
Guyau é um filósofo da vida, da vida sem censuras prévias, eu diria.
É sem dúvida preciosa e
pertinente a referência de Regina, de início, ao pensamento de Nietzche
de que “alguns homens nascem póstumos”, quer dizer, que são homens um
tanto premonitórios, muito à frente de seu tempo, talvez por isso meio
ou totalmente incompreendidos. Isso me faz pensar, de pronto, entre
outros indivíduos, em Thomas Edward Lawrence (Lawrence da Arábia) e em
Dora Vivacqua, a Luz Del Fuego. Mas a vida não é vivida necessariamente
para agradar ou desagradar, para premiar ou punir. A ideia de sansão é
para ser percebida, e rejeitada, como colocou Guyau, o chamado “filósofo
da vida”.
Cada época tem seu
crepúsculo, sua semiescuridão, a tornar difícil a percepção da claridade
das verdades naturais, por exemplo. É importante, enfatizo, entender e
cultivar, sem pretextos, um grande amor pela vida, pela nossa realidade
primeira e última. Parece irrecorrível admitirmos que tudo que é humano
nos deve interessar... Nudez e sexo são vida!
A
ideia de Guyau a respeito da moral é, anotemos, original e direta: é a
noção de moral sem sanção, sem castigos e sem recompensas, como destaca
Regina Schöpke. Para Guyau, não há, pois, uma lei moral transcendente,
universal, válida para todos os tempos e para todas as sociedades,
observa Regina. Guyau julga um contrassenso afirmar leis nacionais como
regras naturais e universais. As leis naturais valem por si mesmas, são
invioláveis em última análise, independentemente das preferências e
julgamentos humanos. E, até por isso, como biólogo e naturista (ou
nudista), valorizo a vida natural em tom maior, “sem pedir julgamentos,
conforme a natureza”... O homem, como coloca Guyau, ser natural, jamais
poderá violar concretamente uma lei natural, ou então ela não seria uma
lei natural... Guyau nos alerta, corajoso e preciso, de que “não devemos
nos deixar enganar por uma moral que acredita que a natureza castiga e
que o homem e Deus apenas se encarregam de completar a tarefa”. Para
Guyau e Nietzche, salienta Regina, a natureza é amoral, conceito também
abraçado pela Ciência, pela Biologia moderna, por exemplo, e que eu
particularmente ratifico, aceito...
A natureza não pede
julgamentos, costumo colocar sempre. A natureza não elucubra nada de
moral, ela não é boa nem má, mas apenas indiferente, autossuficiente,
como já nos disse o biólogo Richard Dawkins. Regina anota que “é claro
que aqueles que se afastam de seus instintos mais básicos sofrem as
consequências, mas isso não ocorre de modo matemático nem por causa de
alguma determinação divina ou racional; é uma lei simples de ação e
reação; come-se muito, passa-se mal”... Para Guyau, afinal, a questão da
punição é inútil, pois é impossível quantificar um dano moral, enfatiza
Regina. É mister, parece-me, buscar a realidade, a verdade natural, os
verdadeiros valores humanos. A natureza se basta e não castiga ninguém,
e a vida é um processo natural que não depende da vontade limitada do
homem. Guyau sugere que os nossos erros, sempre repetidos, só podem ser
corrigidos pela obediência aos impulsos naturais, às necessidades da
vida social, e não por uma obrigação mística. Ambição e egoísmo, assim
como agressividade (como nos diz Desmond Morris em “O Macaco Nu”), são
atitudes naturais do bicho-homem, que certamente devem ser melhor
conhecidos e considerados, mas nunca rejeitados como demoníacos...
Regina
Schöpke destaca que, para Nietsche, o homem é um animal adoecido, um
animal que luta contra seus instintos e contra a própria vida, enquanto
Guyau sugere que o mais importante seria, então, afirmar “o humano” em
todos nós. Para Regina, Guyau e Nietsche se tocam, ambos escritores e
poetas, criadores de beleza. E de um convite irresistível à reflexão,
acrescento. Bergson, por exemplo, nos lembra (inclusive a respeito de
Guyau) que é preciso sempre “intuir” sua alma (a nossa alma) para tentar
entender suas ideias (as nossas ideias). Mas pouca gente sabe ou se
dispõe a intuir: só enxergam o próprio umbigo.
O vício e a virtude,
afinal, o chamado bem e o dito mal, vida e castigo?... A nudez deve ser
castigada? O conceito de nu do termo “nudismo” incomoda?... A nudez,
dado primeiro e natural no dizer sábio de Rose-Marie Muraro, é objeto ou
sinônimo de pecado, de pornografia? Até quando? Não se trata de
afirmação ou de convicção vigorosa, mas, sim, de reflexão serenamente
proposta.
Guyau anota que a ideia de
sanção (de castigo) é um dos princípios da moral humana, ligada (essa
ideia) aos fundamentos de todas as religiões; e que a religião consiste
essencialmente na crença de que existe uma sansão metafisicamente ligada
a todo ato moral. Mas a natureza, observemos, não julga nem castiga.
Guyau, definitivo, arremata: “A natureza não pune ninguém e não tem
ninguém para punir, pela simples razão de que não existe verdadeiro
culpado contra ela; não se viola uma lei natural, ou não seria uma lei
natural. A pretensa violação de uma lei da natureza nunca é mais do que
uma verificação, uma demonstração visível desta. A natureza é um grande
mecanismo sempre em movimento, que o querer do indivíduo não poderia,
nem por um instante, entravar... Ser ou não ser, ela não conhece outro
castigo nem outra recompensa”... É importante não procurar ver, ou
propagar, castigos na natureza; a nudez não é pornográfica nem
demoníaca, e sexo não é sujo nem imoral. A filosofia do
Nudismo-Naturismo é apenas natural, como diz William Welby. Eu apenas
anoto, e proponho uma boa reflexão: há sentido em pensar a vida cheia de
castigos? Termino citando novamente o notável Jean-Marie Guyau: “A
moralidade deve, a priori, ter consequências passionais?... A verdade,
acreditamos, é que, de modo nenhum, percebemos uma razão puramente “a
priori” para juntar um prazer sensível a uma intenção que, por hipótese,
seria exclusivamente suprassensível e absolutamente heterogênea à
natureza”. Anoto e subscrevo. É inteligente não elucubrar demais,
imaginando transgressões onde só há vida. Todos nós nascemos nus...
Em tempo: reflitamos
serena e profundamente, então, a respeito das censuras e das sansões,
pois a mãe natureza jamais evidenciou falsos pudores nem vestiu ninguém.
É mister não criarmos nem alimentarmos supostas crises. Não há
concretamente crises na natureza, e muito menos a respeito da nudez
humana, natural por sua essência, que jamais pode ser sítio de
preconceitos ou de delírios pudicos, convenientes. Assim como a
natureza, as artes em geral (a literatura incluída) não pedem nunca
quaisquer sansões. A quem interessariam as mencionadas crises
construídas? Com certeza aos “príncipes de Maquiavel”... O homem, de
corpo e mente sadios, não é objetivamente “dono” do planeta Terra nem
das verdades naturais.
Na página “Opinião”, de “O
Globo”, 10/11/2013, o consagrado escritor Veríssimo nos brinda com
várias considerações importantes e oportunas, sob o título de
“Degenerados”... Veríssimo comenta, sagaz, o desaparecimento e a recente
descoberta de obras de arte roubadas pelos nazistas (então liderados por
Adolf Hitler, o psicopata do Terceiro Reich, príncipe negro das crises
elaboradas) durante os anos de trevas da guerra. Falando das obras
pilhadas, Veríssimo assinala: “Elas são obviamente produto da pilhagem
de museus e de coleções privadas dos territórios invadidos pelos
nazistas durante a guerra. Elas estavam no apartamento de um descendente
de Hildebrand Gurlitt, que, apesar de ser judeu, foi escolhido Goebbels
(o homem da propaganda nazista) para avaliar e ajudar a vender os
quadros, e era, legalmente, o dono do tesouro”... Legalmente?... O velho
Gurlitt, judeu, foi objetivamente cúmplice dos algozes nazistas,
certamente, porque, oportunista e inescrupuloso, só visava proveitos
pessoais. Essa “doença” humana é, pois, antiga e recorrente, embora
frequentemente meio oculta. Hitler, muito astuto, chamava essa arte,
esses quadros famosos, de “arte degenerada”, querendo até que ela fosse
ignorada, destruída, ou eventualmente vendida para obtenção de fundos
para a megalomania do Terceiro Reich. O notável Veríssimo arremata:
“Ainda existem milhares de obras de arte desaparecidas na guerra, das
quais não se tem notícia. Mas aos poucos elas reaparecem. Arte é difícil
de matar, inclusive a degenerada”... Eis aí uma bela reflexão!
Veríssimo nos propões
considerar, sobretudo, a inquietante mente humana e, de passagem, a
história não tão distante. A Arte, assim como a Ciência, e as Verdades
Naturais, por exemplo, são concretamente difíceis de matar, mesmo que
alguns incontidos continuem sofismando, utilizando elucubrações pobres,
e até provocando querelas destrutivas ou atos de violência. Nesses
nossos tempos um tanto artificiais, sobretudo, creio que uma séria
reflexão se impõe, até porque, por exemplo, sem raízes firmes não há
árvore que resista de pé, a menos que seja um mero artesanato, uma
plantinha artificial. É preciso que se leve em alta conta, infelizmente,
a atuação de insones iconoclastas, que estão sempre ativos, buscando
desconstruir obras e vidas alheias, incansáveis sempre na tentativa de
apagar evidências, de desacreditar conceitos, fundamentos e definições,
buscando acabar com símbolos e monumentos julgados incômodos. Mas não há
“arte degenerada”, não há “instintos deletérios”, não há “nudez
degenerada ou demoníaca”, não há “sexo sinônimo de porcaria”... A
natureza nua é dado primeiro e último, repito. Precisamos repensar
serenamente essa questão da intolerância e das desconstruções egoístas,
das sansões e dos castigos, como possível solução moral. Quem tem medo
da História? Quem tem medo da Ciência e da natureza nua? Quem tem medo
do conhecimentos, afinal? Estamos cientes plenamente de nossos limites
como seres humanos? Penso que é melhor refletir, estudar, até
eventualmente duvidar, em vez de alimentar convicções radicais. A
crítica à ideia de sansão pode inclusive nos fazer considerar uma boa
pergunta: somos cientificamente primatas racionais que tendem a se
imaginar como anjos? A nossa prioridade consciente deve ser procurar
viver plenamente, sem inventar culpas e divisões. A natureza nua nos
convida à busca do equilíbrio, da vida sem amarras.
Paulo Pereira
Novembro/ 2013
Escritor, tradutor,
biólogo,
o naturista mais antigo do
Brasil.
Membro do conselho Consultivo da FBrN