Abricó, praia
livre?...
por Paulo
Pereira*
Li a matéria escrita
por Cibelle Brito (InfoGlobo)
focalizando aspectos
da frequência na
praia do
Abricó-Grumari, e
concordo que há
controvérsias,
muitas
controvérsias. A
curiosidade existe,
sempre existiu e
esperamos que nunca
morra, pois é a base
primeira do
conhecimento, mas
realmente há
transbordamentos,
sobretudo, de
comportamento, em
geral, que pedem um
olhar mais atento,
perceptivo,
especialmente no que
se refere à nudez, à
nudez ainda tida
como tabu por grande
parte da humanidade.
Curiosidade é bem
diferente de
comportamento
inadequado,
agressivo. Muita
gente já disse, e eu
ratifico com ênfase,
que se não fosse
pela nudez, pela
prática nudista, o
proclamado
“naturismo” pouco
importaria de fato.
O nu é o foco. E,
com a nudez, o sexo,
o mito, o
preconceito, o
pecado, e, por
certo, a
transgressão... É
surrealista falar de
“naturismo” sem
falar de “nudismo”,
de nudez sem
sexualidade, do que
se entende por
natural confundido
com o cultural.
O “problema” do
Abricó não é
propriamente o
centenário
“naturismo”, mas o
corpo nu, ainda
eleito por muitos
como sítio do
exótico, do impuro,
do pecaminoso.
Então, falar de
Nudismo-Naturismo é,
por certo,
considerar, antes, a
natureza, e procurar
ver a paisagem do
Abricó como natural,
apenas natural,
talvez sublinhando o
sábio dizer do
mestre William Welby,
que proclamou, como
já destaquei uma
dezena de vezes, que
a filosofia do
naturismo-nudismo é
apenas Natural!
Ponto. E eu sempre
acrescento o exemplo
rico e eloquente dos
índios, dos “homens
naturais”, de resto
nus na natureza, a
nudez como dado
primeiro, como quer
R. Muraro. Mas a
chamada “sociedade
vestida”, vestida
sempre, até de
intolerâncias e de
violências, busca
enxergar de forma
conveniente o que é
apenas natural, para
lucro e poder;
talvez, até por
isso, sem qualquer
simplismo, a nudez
como tabu, a nudez
perseguida,
castigada (como
disse Nelson
Rodrigues), o nu
ultrajado dos campos
de concentração, o
nu
(nudista-naturista)
como pretexto. São
verdades do
bicho-homem, esse
primata paradoxal,
mortal e cruel, mas
sempre pregando a
eternidade, o poder
angelical, a
hipocrisia das
meias-verdades...
Para quem, como
pioneiro, conhece e
frequenta o
Grumari-Abricó,
desde 1964, como eu,
participando,
inclusive,
ativamente, ao lado
de um grupo
batalhador liderado
pelo amigo Pedro
Ricardo, da luta
pela “oficialização”
da praia do Abricó,
como reduto
nudista-naturista,
embora com saudades
de um tempo menos
tumultuado, não é
cômodo verificar
que, mesmo depois de
mais de vinte anos,
os problemas quase
não mudaram, ou
mudaram até para
pior... Vale
observar, mesmo que
de passagem, e até
para evitar
polêmicas vazias,
que é indispensável
procurar entender,
inclusive no
prestígio da Lei,
que há concretas
diferenças entre um
clube naturista e
uma praia naturista,
sobretudo,
sabendo-se que as
praias no Brasil são
legalmente espaços
públicos e, dessa
forma, sujeitos à
autoridade do
Estado, o que coloca
o Estado (no caso, o
Município) como
responsável pelo
respeito à Lei, pela
segurança e livre
trânsito das
pessoas, dos
frequentadores e,
certamente, pelo
policiamento da
área, de forma
efetiva, coibindo
crimes e
extravagâncias,
afinal. Mas onde
estão os agentes do
Poder Público?
Se ocorrem abusos no
Abricó, contra os
naturistas ou não,
cabe às autoridades
cumprir e fazer
cumprir as leis,
fazendo com que a
frequência no Abricó
seja serena, sem
violências. Quanto
aos fundamentos
histórico-filosóficos
do
Nudismo-Naturismo,
por exemplo, não há
respaldo concreto
para falarmos em
“nudez obrigatória”
e “nudez
opcional”... O
conceito
internacional de
“praia livre” não
prestigia essa dita
dicotomia; a praia
livre, o nome já
diz, é um espaço de
livre trânsito, onde
efetivamente você
pode estar despido,
ao natural, o que é
um tanto diferente
de “praia
naturista”, conceito
que se aplicaria
melhor a um espaço
restrito, até
particular. A nudez
é nosso traje de
nascença, e, como
tal, não pode ser
chamada (a nudez) de
opcional ou
obrigatória, mas
apenas de natural.
Os costumes e as
culturas não servem
para definir
cientificamente o
corpo, a nudez ou o
sexo, embora possam,
na prática,
circunscrevê-los
dentro de parâmetros
convencionados. A
pergunta, então,
talvez fosse essa:
alguns afoitos, com
a negligência do
Poder Público,
querem transformar a
praia do Abricó
(livre ou naturista)
numa “zona franca”
de sexo e violência?
Até quando?... A
nudez não espera; a
nudez não tem dia
marcado... A nudez é
nossa verdade
natural, do berço ao
túmulo, até que
Deus, talvez, queira
mudar. A praia do
Abricó tem história
antiga, e rica, e
merece ser, de fato,
um lugar de
liberdade sem medo,
sem crimes, sem
imposições, sem
censuras, do jeito
que a natureza quer.
A prática
nudista-naturista
precisa ser,
anotemos, também
pedagógica, educar
para uma vida
melhor, com boa
informação, sem
intolerâncias, com
efetivo
conhecimento. Ser
bom
nudista-naturista é
também dar o bom
exemplo, sem
delírios utópicos,
sem eleger, quem
sabe, pudores
místicos. Ser
nudista-naturista é
assumir sua verdade
natural, com
respeito. A praia do
Abricó é um solo de
libertação, de
cidadania plena, de
nudez natural.
Ponto. Nudez é
vida... E, se é
vida, vida plena, é
para ser
experimentada com
naturalidade, sem
violências, sem
censuras, sem
pretextos e sem
arbitrariedade. A
sociedade dita
vestida é,
sobretudo,
repressora e a
repressão,
geralmente
irracional, conduz
ao sofrimento e à
ânsia de
transgressão, de
libertação. O vestir
compulsório agride a
dignidade natural do
corpo e pode
resultar em
comportamentos
inadequados,
inconvenientes, e
até obsessivos.
Nudez e sexo
reprimidos, desde a
infância, com falsos
pudores, acabam em
transbordamentos.
Mas o naturismo não
pode (nem deve)
pagar a conta...
Ao finalizar,
recordo o que
escrevi recentemente
a respeito de
sanção, de castigo,
no meu artigo “Vida
e Castigo”, aqui no
Jornal Olho Nu,
comentando o
pensamento do mestre
Jean-Marie Guyau, o
filósofo da vida.
Recordo que eu disse
que cada época tem
seu crepúsculo, sua
semiescuridão, a
tornar difícil a
percepção da
claridade das
verdades naturais.
Como Guyau,
parece-me um
contrassenso afirmar
leis racionais como
regras naturais e
universais... A
verdade moral não
deve ser construída
sobre recompensas ou
castigos; as leis
naturais sempre
valem por si mesmas.
Nudez e sexo não
estão sujeitos, a
rigor, a uma moral
puramente racional,
cultural, mas ao
livre fluxo do
equilíbrio natural,
ao bom-senso
inteligente, num
culto sereno da
liberdade sem medos.
O natural é
inviolável...
Vivamos
integralmente, sem
elucubrações, como a
natureza indomável
quer, sempre
naturalmente,
despidos de corpo e
alma, mas sem
utopias delirantes.
É indispensável,
enfatizo, separarmos
o joio do trigo, o
natural do cultural,
o sadio do doentio.
Os que vão à praia
do Abricó para
exibicionismo, para
agressões, para sexo
explícito ou para
perturbar os
nudistas-naturistas
positivamente não
são meros curiosos
e, na ausência do
Poder Público, estão
criando desordem e
denegrindo o renome
do
nudismo-naturismo,
ainda que
indiretamente. É
tempo de agir e
mudar.
Em tempo: Zuenir
Ventura, sempre
talentoso e bem
informado, nos fala
das chamadas tribos
violentas (“O Globo”
– 15/02/2014) e
certamente nos
convida a uma
profunda reflexão.
Como nos diz Zuenir,
são cada vez mais
visíveis os sinais
dos comportamentos
desviantes e
agressivos. Ocorre
frequentemente,
sobretudo, que
algumas minorias
acabem atacando
outras minorias, uma
luta de grupos
contra grupos, uma
busca insana sempre
por espaço e poder.
Zuenir, atento,
comenta: “Em São
Paulo, no mês
passado, seis deles
confessaram à
polícia ter
espancado até a
morte Bruno Borges,
de 18 anos, por ser
gay... No Rio, dois
episódios de
violência juvenil
chamaram à atenção.
No primeiro,
agressores prenderam
pelo pescoço, num
poste, um assaltante
de 15 anos, depois
de espancá-lo e
deixá-lo ferido e
nu”... Ferido e nu,
notemos bem,
completamente nu,
objetivamente
indefeso, mais uma
vez a nudez
ultrajada. É bom
pensar bastante a
esse respeito! A
nudez como perda de
identidade? O
indivíduo reduzido a
um mero número para
uma possível
estatística
burocrática? Zuenir,
observador, conclui:
“São tribos, e cada
tribo é uma
categoria à parte,
com hábitos
particulares e uma
cultura própria. O
que as une é o gosto
pelo vandalismo e a
transgressão”.
Agressão e
desobediência,
afinal. Façamos,
então, uma leitura
serena de todas
essas questões. A
violência, em
qualquer de suas
formas, e a
transgressão, a
derrubada de
limites... No
Abricó, parece
evidente, falta a
presença do Poder
Púbico, falta uma
melhor estrutura
geral, mas parece
que andam sobrando
os comportamentos
desviantes e,
sobretudo, o
desconhecimento, por
parte de alguns
afoitos, das
verdadeiras
essências
histórico-filosóficas
do Movimento, desde
Ungewitter.
Parece-me importante
que os
nudistas-naturistas
procurem, se
possível, ler mais e
melhor, buscando as
boas sínteses, as
corretas
construções, sem
casuísmos, sem
desculpas, sem
aceitação do
arbítrio e da
descaracterização da
filosofia
nudista-naturista
centenária. Digo
tudo isso com muita
tranquilidade, sem
quaisquer
arrogâncias, sem
teimosias utópicas,
mas com a
experiência que o
tempo me conferiu,
querendo apenas
somar, sem medo.
Concluindo, enfatizo
o que foi sabiamente
proclamado por C.
Obergfell, que
afirmou que o
nudismo-naturismo só
será grandioso e
sereno quando
prestigiar
integralmente suas
raízes, quer dizer:
quando for apenas
natural, fraterno,
laico, sem a
invencionice de
nudez opcional e
nudez obrigatória, e
sem fazer da nudez
um mero pretexto
para vícios e
violências.
Recordemos, afinal,
que os tempos
mudaram e a nudez já
está cansada de ser
castigada.
Precisamos de
cidadania e bom
senso, sempre.
Paulo Pereira
Escritor, tradutor,
biólogo,
o naturista mais antigo do
Brasil.
Membro do conselho Consultivo da FBrN
(enviado em 20/02/14)