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Jornal Olho nu - edição N°166 - Setembro de 2014 - Ano XV |
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Ato obsceno e nudez (o artigo 233 do Código Penal)
por Arthur Virmond
de Lacerda Neto* Três fatos ocorreram recentemente, no Brasil: um sujeito perambulou desnudo, em Jaraguá do Sul (SC) e foi detido pela polícia, por ato obsceno; uma estrangeira desnudou as suas mamas, no areal da praia de Copacabana, ao que um policial instou-lhe para que as cobrisse; jogadores da seleção croata apresentaram-se despidos na piscina do hotel em que se hospedavam, em Salvador, ao que alguns brasileiros retiraram-se do local, “para proteger as suas famílias”. São fatos característicos da mentalidade de certos brasileiros, para quem há partes indecentes no corpo humano e para quem a nudez é imoral. Tal “ethos” acha-se consagrado no artigo 233 do Código Penal, que comina detenção de três meses a um ano, ou multa, a quem “praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público”. É obsceno o ato de conotação sexual, o comportamento cujo conteúdo seja de sexualidade, que se pratique em lugar de acesso às pessoas em geral (praças, ruas), em recinto a que as pessoas possam aceder ou em lugar em que o autor do ato possa ser observado por terceiros (uma janela, por exemplo). Este artigo é característico da moralidade repressora da sexualidade. Ele pune a manifestação de sexualidade, visível por outrem. Não se trata de punir manifestações quaisquer, senão as de natureza sexual: o valor que se contém nesta norma é o da repressão da liberdade de manifestação especificamente dotada de conteúdo sexual. Não está em causa a liberdade, porém a censura à sexualidade. A exposição do corpo, em público, não constitui ato obsceno. O corpo nu, exposto em lugar público, à vista de toda a gente, seja em uma praça, em um parque público, na janela de casa, não passa disto mesmo: do corpo de alguém, destituído de trajes. A condição de nudez não atribui, por inerência, conteúdo sexual ao corpo exposto. A exposição dos seios nas praias, por exemplo, não é ato de natureza sexual; é, apenas, ato de exposição de uma parte do corpo. A exposição da genitália ou das nádegas,nas praias ou em praça pública, não é ato de natureza sexual; é, apenas, ato de exposição de uma parte do corpo. É legítima e saudável a exposição do corpo, na sua totalidade, nas praias, em qualquer praia, à vista de toda a gente; é uma questão de liberdade individual e não é uma questão de moralidade. Só enxerga imoralidade na exposição dos seios, das nádegas, da genitália, perigo para as famílias e para as crianças quem incorporou tabus e preconceitos destituídos de qualquer sentido, completamente artificiais e que é momento de abandonar. A nudez integral é problemática para quem a transforma em problema por haver incorporado, por educação deformadora ou por imitação, a forma mental que a associa à sexualidade e esta a pecado ou que incute vergonha de expor as mamas ou o pênis. A associação entre seios, pênis, nádegas, por um lado, e sexualidade, por outro, é artificial. Não há relação de inerência entre os primeiros e a segunda. Os seios, o pênis e as nádegas não são necessariamente sexuais; a sua exposição não é necessariamente sexual. Todos eles são partes do corpo, como as mãos e olhos (que também desempenham papel sexual: não é por isto que as mãos andam calçadas com luvas nem os olhos vendados), de que ninguém se envergonha. Assim como nada justifica envergonharmo-nos das mãos, dos olhos, dos cabelos, do abdômen, dos pés, nada justifica envergonharmo-nos das mamas e do pênis. É tão óbvio que deva ser assim, porém para muitas pessoas, não o é: são pessoas cujo padrão de moralidade complicou-se desnecessária e artificialmente. O artigo 233 do Código Penal fundamenta-se em dois pressupostos, que não explicita e em uma mentalidade. Os pressupostos são os de que há relação de inerência entre certas partes do corpo e a sexualidade, e o de que a exposição delas é forçosamente sexual. Tais pressupostos são falsos. A mentalidade é a de que a sexualidade deve ser reprimida. Este artigo representa manifestação pontual de um ethos cultural anti-sexual, que permeava a sociedade brasileira em 1940, ao tempo da redação do Código Penal. Setenta e quatro anos atrás, sexo era tabu, as proibições relativas à vida sexual eram acentuadas, o sentimento de culpa pelo exercício da sexualidade era arraigado em muitas pessoas. Porém 2014 não é mais 1940. Entrementes, a sociedade mudou, os costumes e as mentalidades adquiriram liberdade. Advieram, em força, a liberdade sexual, o controle de natalidade, a contracepção; incrementou-se a sexualidade pré-conjugal, descriminou-se o adultério, legalizou-se o divórcio; introduziu-se a educação sexual nas escolas, abandonou-se o tabu da virgindade feminina, instituiu-se o casamento homossexual, sexo deixou de ser tabu. Muitas pessoas praticam o nudismo doméstico, notadamente nas regiões tropicais do Brasil: em casa, despem-se o marido, a mulher, os filhos. São pessoas que admitem a nudez, ao menos em família. É surpreendente que, no carnaval, notadamente carioca, mulheres desfilam inteiramente nuas, como integrantes da beleza estética dos carros alegóricos. Décadas atrás, eu ouvia mulheres da geração da minha avó escandalizarem-se com a “pouca vergonha” das figurantes semi-nuas ou nuas: era reação típica de pessoas cujo modelo mental formara-se nos idos de 1920, ou seja, a cerca de um século atrás. Os tempos são outros. A obscenidade de 2014 não é mais, não pode ser a de 1920 nem a de 1940, ano da promulgação do Código Penal que, por sua vez, servia à mentalidade de então. O que ofendia o pudor público em 1940 não o ofende mais. Não haverá brasileiro esclarecido e sensato que repute imoral a exposição dos seios nem a do pênis. Os seios e o pênis são inerentemente indecentes? Reflita por um minuto e responda: onde está a indecência deles? Há, certamente, brasileiros sexagenários, septuagenários, octagenários e religiosos de várias idades, que os considerem assim: os velhos mantêm-se no seu tempo, no pretérito; os religiosos mantêm tabus e preconceitos. Nem as antiguidades mentais nem o obscurantismo podem nem devem servir de critério exegético da lei. A exposição das mamas, nas praias, nos parques públicos; a exposição da genitália e das nádegas nas praias e nos parques públicos; a nudez integral em público não escandaliza como escandalizava a geração dos nossos avós e bisavós. Não é mais compatível com o estado das mentalidades dos brasileiros, com o advento da liberalidade de costumes reputarem-se obscenos atos que não o são, que as pessoas não consideram mais como tal. Não é verdadeiro, não é real, não é natural reputar-se indecente alguma parte do corpo humano: não há partes indecentes; todo o corpo (o que inclui nádegas, vagina, pênis, escroto, seios, pentelhos) é natural e decente. A “indecência”, neste caso, não passa de preconceito, de condicionamento cultural que se incute nas pessoas, como dantes se lhes incutia a homofobia, o racismo e a sujeição feminina. É claro que sempre haverá os pudicos, os de sensibilidade exacerbada, os intolerantes, os mal-resolvidos sexualmente, os religiosos, os das gerações supra-50: para estes, nudez é sexual inerência e deve ser negada. Se uma mulher expõe as mamas nas praias, não pratica ato obsceno nenhum. Se, em uma praia qualquer, um banhista despe o calção ou a sunga, não pratica ato obsceno nenhum. Se alguém perambula nu pela cidade, não pratica ato obsceno nenhum. As mamas são órgãos de alimentação do lactente, que lhe propiciam alimento, sustento, vida. Por que lógica o brasileiro reputa obscena a exposição dos órgãos que asseguram vida à criança? Não há lógica; ao contrário, há a mais completa insensatez, a mais total estupidez. Por que lógica admite-se, entre nós, que o homem exponha o tórax porém reputa-se obsceno que a mulher faça o mesmo? Não há lógica; ao contrário, há a mais completa ausência de bom senso. Na Alemanha, na Inglaterra, em Nova Iorque, em Barcelona, a moral e a lei admitem a nudez total em público: constitui direito de cidadania não se vestir e apresentar-se desnudo na rua, nas lojas, nos mercados, no metrô. Há fotografias disto. Na Grécia, as mulheres expõem as mamas nas praias com a maior naturalidade; na Espanha, na França, na Inglaterra, na Suécia, na Dinamarca, na Alemanha, nos E. U. A. há centenas de praias e campos de nudismo, há décadas. Para o europeu, a nudez é natural; para ele, é ridículo a mulher ter de pôr um trapinho sobre os seios, para evitar a “obscenidade”. Para ele, é ridículo os homens terem de tapar o seu pinto e a sua bunda, para evitar a “obscenidade”. Durante uma partida de futebol, em Manaus, na copa de 2014, um torcedor inglês desnudou-se,de todo, no estádio, indiferente aos brasileiros que o fotografaram. Ele está acostumado com o desnudamento e, na verdade, debaixo de 34 graus, estava certo ele. Em Salvador, os jogadores croatas apresentaram-se desnudos na piscina, com a maior naturalidade, para escândalo de alguns brasileiros que se retiraram “em defesa das suas famílias”. Em defesa, por quê? Em que é que os croatas as ameaçavam? Em nada. Coisa de gente de mente estreita. Fizessem o mesmo, nudez em família, como é comuníssimo na Europa: pais e filhos, todos nus. O brasileiro é que sequer sabe como funciona a nudez européia e a nudez grupal e, por o ignorar, projeta-lhe os seus preconceitos e as suas imaginações erradas. Tudo isto já perceberam os europeus há décadas. Eis porque, na Europa, as Pedaladas Nuas realizam-se de dia,com ciclistas inteiramente pelados; eis porque, em Nova Iorque, na Alemanha, na Inglaterra, na Espanha, quem o desejar, é livre de circular pelas cidades em nudez total. E as pessoas fazem-no. Trata-se de um tipo de liberdade existente na Europa, inexistente no Brasil. Sim, em vários países europeus pode-se andar pelado na rua, no mercado, nas lojas, no metrô e ninguém se escandaliza com isto, ninguém exclama “O que vai se dizer para uma criança que vir isto?”, ninguém chama a polícia. Cada um cuida da sua vida. O entendimento dos juristas deve acompanhar a evolução dos paradigmas culturais: o conceito doutrinário e jurisprudencial do que seja ato obsceno deve corresponder ao nosso tempo, em que a repressão sexual abrandou-se consideravelmente e em que o caráter ofensivo sexualidade pertence ao passado. Não faz sentido o policial intervir sobre a estrangeira que andou de mamas ao vento em uma praia da cidade do Rio de Janeiro, para que ela as cobrisse. Não faz sentido a polícia deter o sujeito que, em Jaraguá do Sul, perambulou nu. Não culpo a polícia, que apenas funciona como veículo dos consensos (?) sociais. Para que ela se abstenha de reprimir a exposição do corpo, é necessário formar consciência crítica, suscitar reflexão e debate acerca deste tema, educar para a liberdade, ao invés de manter também este preconceito, como por séculos se manteve o da homofobia, já hoje arcaico. (enviado em 2/09/14) |
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