Abricó:
Jubileu de Ouro
por Paulo Pereira*
Até mesmo em 1964,
numa época sombria e de exceção, a velha mãe natureza se recusava a
aceitar limites inaturais, que prestigiassem, por exemplo, censuras
e intolerâncias. A natureza prosseguia festejando a liberdade nua,
sem julgamentos, e a vida, afinal, em tom maior. Eu, que venho
comprovadamente de longe, já estava lá no Grumari/Abricó, uma praia
ainda meio selvagem, recôndita, sem falsos pudores, com o sol e o
mar apenas por testemunhas, cúmplices doces, distantes da mera
indiferença.
Eu ia frequentemente
ao Abricó para abraçar o mundo natural, na busca instintiva de
encontros e reencontros libertários, serenos, sem violências, as
águas salgadas do velho mar envolvendo minha nudez, então jovem, e
aparentemente desenhando pequenas esculturas e flores de espuma
sobre meu corpo sem vestes ou máscaras... São antigas imagens
atemporais, que ainda hoje persistem, e que animam minha luta,
sugerindo a perenidade nas impermanências do ontem e do hoje na
busca do amanhã. Eu me acostumei a sentir os aromas sutis do Abricó,
que era meio agreste e inabitado, que não cheirava a gente, como
diria o nobre cacique Seattle, a gente que tenta ignorar o pulsar
indomável da natureza...
A vida, na verdade,
teima em afirmar-se irrecusável, soberana, sem pecados, sem culpas
inventadas, meio agridoce, com gostinho de infinito. Em 1964, no
Abricó silencioso e limpo, encontrei o bom amigo Adilson, o
Sargento, pescador nudista, contador de boas histórias, observador
experiente do cotidiano histórico. E não posso esquecer do velho
Benedito, morador eventual de um pequeno sítio, porteiras de
madeira, homem simples e acolhedor, que, ali no meio do mato, estava
sempre pronto a ajudar, a oferecer água fresca, uma fruta ou
refrigerante.
O Grumari/Abricó era
um lugar de grande beleza rústica, com fauna e flora ainda bem
preservados. Mas, naquela ocasião, sobretudo, o acesso à praia era
difícil. Eu gastava quase uma hora e meia da Tijuca, de carro, até
lá. Era uma aventura prazerosa, sem bandidos, sem crime organizado,
sem excesso de veículos, sem muita poluição... No Abricó, de fato,
vivi muitas manhãs de paz, de contato íntimo e franco com a natureza
nua. E, com o passar do tempo, muitos amigos e amigas uniram-se a
mim, os famosos “comandos naturistas” em ação, o prazer da
convivência espontânea, sadia, simples e natural. Recordo, com
grande emoção, a figura ímpar de Osmar Paranhos, o militar cidadão
do mundo, naturista entusiasmado, poeta, também contador de boas
histórias, confidente, um dos nossos homens nas tropas de Suez,
Egito, e frequentador apaixonado de espaços naturistas no Caribe e
na França... Quanta saudade! Paranhos amigo franco, companheiro de
Luz Del Fuego na Ilha do Sol, fundador também do Clube do Sol, do
Clube Naturista Brasileiro. Lembro-me dos casos que ele me contava
sobre o Egito, sobre a convivência com a tropa, com militares da
Índia distante, que misturavam o inglês com seus dialetos indianos.
O belo Abricó
testemunhou sempre muitos encontros nudistas-naturistas, que
constituem concretamente a base histórico-afetiva para a
oficialização da praia como espaço destinado à prática
nudista-naturista, como felizmente ocorre agora (2014) através da
Lei Municipal. O pioneirismo do Rio de Janeiro está reafirmado,
datado. E não podemos igualmente esquecer de registrar, com ênfase,
o trabalho incansável do amigo Pedro Ricardo, ao longo de tantos
anos, pela oficialização do Abricó, mais uma evidência clara de que
é importante viver o bom combate.
Eu falo do Grumari/Abricó
sempre com indisfarçável emoção, modéstia à parte como combatente da
primeira hora, como pioneiro conhecido embora modesto, como
testemunha ocular desses cinquenta anos bem vividos. O Abricó tem
história! E os bons companheiros de sempre são, repito, testemunhas
idôneas, sim senhor, sem lendas pueris ou invencionices, da grande
saga nudista-naturista do Rio de Janeiro, do Brasil, desde 1949. Há,
de fato, grandes protagonistas que são os fatos históricos
comprovados. Essa grande vivência humana, humanista, corajosa e
natural, no Abricó, nesse meio século, está plena de energia
positiva, sem vaidades e desconstruções. O Abricó, espaço sagrado da
vida nua, é um marco precioso, inconteste, do Movimento
Nudista-Naturista do Brasil, que precisa ser respeitado, lembrado
com carinho. Ao falar do Abricó, mergulho serenamente em algumas das
minhas mais queridas memórias, guardando no meu íntimo a certeza
confortadora de que, afinal, deixei muitas impressões naquelas
areias cúmplices, impressões sobretudo de meus passos mais simples e
reveladores, marcas indeléveis que só a mãe natureza sabe de fato
colecionar...
Admito humildemente
que poucos podem, como eu, ter vivido o privilégio de encontrar e de
edificar, aos poucos, um espaço de livre viver como o nosso Abricó,
felizmente não de forma solitária. O somar, o compartilhar, por
exemplo, tem sempre estado na ordem do dia. A aceitação dos corpos
nus no Abricó é uma afirmação de cidadania, e de respeito pelas
verdades naturais. Ao meu lado, desde 1964, Paranhos, Daniel de
Brito, Sargento, Paulo Oliveira, Terson Santos, Raul Cardoso e Pedro
Ricardo, por exemplo, são nomes consagrados. É, pois, no Abricó que
se deve esquecer o cansaço ao sol que queima sem dor, vivendo manhãs
e tardes de paz, como a natureza manda. Tudo começou naquela manhã
ensolarada de 1964. E até parece que foi ontem...
*Paulo Pereira,
Biólogo,
estudioso do
Naturismo,
ex-presidente da
Fraternidade Naturista Brasileira
e da Rio-NAT
pereiranat37@gmail.com
(enviado em
16/11/2014)