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Jornal Olho nu - edição N°175 - Junho de 2015 - Ano XV

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Teologia da nudez, por um nudista.

(primeira parte)

 

por Arthur Virmond de Lacerda Neto*

6.XII.2014

Introdução

 

Chama-se de nudista quem pratica o nudismo, ou seja, a nudação, isolada ou socialmente. Isoladamente, é-se nudista mormente na liberdade do lar, em que se habita sozinho; é nudez social a que se pratica em presença de terceiros, os próprios familiares (no lar ou nos campos ou nas praias) ou estranhos (nos campos e praias nudistas).

 

Transcendendo o simples fato de estar-se descoberto, o nudismo constitui sistema ético laico e humanista, fundamentado na naturalidade do corpo, na inocência da sua exposição socialmente (perante outrem), na recusa da qualificação de partes dele como indecentes ou obscenas, na dissociação entre nudez e sexualidade, na afirmação da soberania sobre o próprio corpo como exercício da liberdade.

 

Também designado de gimnosofia (do grego gimnadzein, exercitar-se nu, e outra vez do grego sofia, sabedoria), o nudismo encerra a sabedoria da nudez e prescinde, inteiramente, de qualquer fundamento teológico, com o qual, aliás, antagoniza: enquanto a pudibundaria resulta, diretamente, da teologia cristã, que afirma a existência do pecado original, como pressuposto, e a vergonha do corpo, como seu corolário, o nudismo, ao contrário, sem se contrapor explicitamente à teologia (mesmo porque houve padres e pastores gimnosofistas) dispensa a idéia daquele pecado ou, pelo menos, interpreta-o em sentido não sexual, o que desarma a origem teológica do pudor.

 

É factível, sim, construírem-se valores, convicções, prescrições e proibições em função do ser humano, do que o beneficia e do que o prejudica, dos seus interesses individuais e coletivos. É possível a constituição de éticas antropocêntricas, apartadas, completamente, das formas religiosas tradicionais de valorar os comportamentos e inspiradas, inteiramente, na consideração autônoma do humano como centro de toda construção axiológica: eis porque a teologia da nudez, qualquer que seja, é inteiramente dispiscienda. Em seu lugar, a antropologia da nudez ou o humanismo da nudez.

 

Enquanto a teologia da nudez recusa o nu, a antropologia da nudez valoriza-o; enquanto aquela envilece o corpo, esta engrandece-o; enquanto a primeira justifica a vergonha do corpo, esta fundamenta a aceitação dele. Enquanto aquela provém da exegese de textos, esta resulta da análise da realidade humana.

 

Admitindo-se, contudo, a possibilidade de interpretações teológicas fundamentarem cosmovisões e costumes, elas são justificam a naturalidade da nudez e a negação do pudor (assim como interpretações outras militam em sentido oposto). Sim, deus repele o pudor e ama a nudez – eis interpretação possível da Bíblia.

 

Irreleva o que a igreja, as igrejas, alguma igreja de culto sobrenatural assere, em qualquer sentido, acerca do corpo e da sua exposição. Importa produzir valores, mentalidades e comportamentos centrados, exclusivamente, no humano e não no divino.

 

Dada, entretanto, a existência de teologia anti-nudez, é edificante empregar a própria teologia para demonstrar que ela possibilita a nudez.

 

Ao invés de se contrariar o pudor, produto da teologia, com argumentos alheios a ela, trata-se de usar a própria para desmenti-lo: filho espúrio de teologia arrevesada, criatura indesejável de criadora inepta, cabe-lhe a ela redimir-se e gerar filho bem-vindo de mãe já agora esclarecida. À teologia de antanho, pudibunda, sucede-se a nova, nudista.

 

Demais, na própria igreja católica, tão avessa à nudez, as interpretações cambiam: o certo de ontem é o errado de hoje e vice-versa. A ortodoxia católica é, sim, versátil e multiforme, ao invés de definitiva, ao contrário do que entende o senso-comum. Ao longo da sua história, ela variou de orientação mais de vez acerca de temas relevantes como a misoginia, o celibato dos padres, o repúdio do protestantismo, o ecumenismo. Já vai abandonando o seu conservadorismo em relação à homossexualidade e à contracepção artificial. Oxalá que cesse de amaldiçoar a nudez e passe a abençoá-la. (Demais, as variações de pensamento católico, como expressão da vontade divina, demonstram que deus nada quer em definitivo nem nada prescreveu de uma vez para sempre. Ele quer o que os seus intérpretes lhe atribuem; não nos disse ele, dizem-nos por ele. Deus é o grande mudo, mesmo porque o que ele alegadamente revelou, na Bíblia, foi-o para os destinatários diretos dela e não para a posteridade humana: a Bíblia terá tido valor de autoridade para os coevos de cada um dos seus textos e para as sociedades a que se destinou. Para qualquer outro leitor, diverso no tempo e no espaço, ela constitui literatura e nada mais. Por isto, inexiste vontade divina atual, embora houvesse existido, em momentos distintos e para gentes diversas, vontade que, alegadamente, exprimiu-se e que lhes impôs determinações. Nada na Bíblia apresenta valor de prescrição nem de obrigação atual).

 

Embora eu recuse qualquer revelação sobrenatural, interpretei as passagens do Gênesis, dos evangelhos e não só, usados pelos teológicos para condenar o nudismo, em sentido inverso ao deles. Os mesmos textos servem em dado sentido como no que lhe antagoniza. Com a Bíblia, prova-se e a tese e a antítese.

 

Deus quis a nudez.

 

O deus cristão talvez fosse nudista ; desconhecemos se o era ou não, se se vestia ou não (sabemos, contudo, que os deuses olímpicos andavam nus). Conhecemos o desnudamento dos anjos ou, quando menos, todos são figurados nus, indício de que, no céu e em presença de deus, inexistiam vexações quanto à nudez. Se deus não andava nu, ao menos, aparentemente, havia quem praticasse o nudismo na sua presença, sob consentimento seu e, quiçá, com aprazimento seu; caso contrário, os anjos andariam vestidos.

 

Certo é que deus criou o primeiro campo nudista e os primeiros nudistas da Humanidade, a saber, o Paraíso e Adão e Eva. Ele criou os dois primeiros humanos da história e os manteve nus.

 

Antes da queda, ambos viveram despidos e desnecessitados de qualquer traje: o de nudez correspondia-lhes ao estado natural, ao estado instituído pelo criador.

 

Deus criou o céu, a terra, a luz e as trevas, os astros, os mares, os animais, as plantas, o homem e a mulher; criou tudo quanto quis e como quis, dentro da sua onipotência e do exercício inteiramente livre da sua vontade ilimitada.

 

Teria produzido as roupas, se a tal correspondera a sua vontade; não o fez porque não quis. Os trajes não integraram o plano da criação, a vontade do criador, que, ao engendrar tudo quanto fez, não fez roupa nenhuma.

 

Mais: após a criação de Adão e Eva, não lhes ordenou, jamais, que fabricassem trajes nem que se vestissem. Recomendou-lhes que procriassem porém não que se cobrissem.

 

O desnudamento dos dois primeiros humanos, obra direta de deus, exprimiu-lhe o entendimento e vontade: para ele, a nudez era irrelevante, indiferente, não lhe era problemática. Deus não era pudico, não se constrangia com a nudez alheia; ao contrário, aceitava-a com naturalidade. A nudez pertence à mentalidade do criador, é obra divina, foi por ele instituída.

 

Adão e Eva teriam vivido sempre nus, não fora o pecado original, após o qual e em razão do qual cobriram as respectivas genitálias, o que originou a vergonha delas.

 

Deus criou a nudez; o homem, pecador, criou o traje; vestiu-se porque pecou.

 

Vestido, o homem rememora o pecado dos seus patriarcas; nu, ele recorda o estado em que deus os criou. Vestido onde esteja, o homem porta sobre si, consigo e em si o estigma da queda; nu, ele semelha aos seus patriarcas no estado em que deus os criou.

 

Nu, o homem pratica a santidade porque vive conforme o querer divino; vestido, ele patenteia a malfeitoria de Adão e Eva, a fraqueza de ambos, a malícia do Demônio. Vestido, ele assinala o erro e a conspurcação da obra divina pela fraqueza humana e pela intervenção do demônio; nu, ele evoca a obra divina e a pureza dos nossos pais primevos antes de fraquejarem e antes de sucumbirem à influência do maligno. Nus, inspiramo-nos pela pureza, pela obediência a deus, pela obra da criação sem o demônio; vestidos, memoramos a desobediência a deus, o pecado, o triunfo de Satanás.

 

A nudez é bendita, evoca-nos o Paraíso e aproxima-nos de deus. O traje homenageia o êxito satânico. O homem que se despe com a convição de que a nudez foi desejada por deus e por ele instituída, é santo na sua nudez; não assim o vestido.

 

O pecado original não foi erótico.

 

Constitui dogma do cristianismo o do pecado original, passível de duas interpretações: a sexual e a desobediente.

 

Pela primeira, toda a descendência de Adão e Eva porta o estigma produzido por ele, a saber, a sujeição das pessoas à concupiscência; a presença, nelas, do apetite genesíaco, que se produz antes de ser contido pela razão. Por isto, se a nudez não é intrinsecamente má deve, contudo, ser geralmente proibida, porque perigosa para o nudista e para outrem , do que provêm dois corolários: é proibido expor-se inutilmente a perigo de pecado grave; é proibido escandalizar a outrem.

 

Segundo tal hermenêutica, o pecado original apresentava natureza sexual e correspondeu à cópula de Adão e Eva. Ela é falsa.

 

É falsa porque gratuita: o relato do Gênesis omite qualquer alusão a relações sexuais; não afirma nem insinua que Adão e Eva copularam ao comerem o fruto ; não associa o fruto proibido nem a árvore à sexualidade. Longe disto, deus nomina a árvore como sendo a do “conhecimento do Bem e do Mal” e não a do “conhecimento da luxúria” ou da sexualidade, da concupiscência, da carne.

 

Por isto, é completamente infundada qualquer relação da árvore, do fruto respectivo e do pecado original com a sexualidade. O pecado original não foi o do coito nem o do desejo sexual que porventura sentisse Adão por Eva nem vice-versa, mesmo porque, antes de o cometerem, eles achavam-se já desposados e jungidos a procriar, ou seja, a copularem; ao pecarem, deus já lhes legitimara a libido, a volúpia, o coito. Ora, o pecado não poderia corresponder ao que deus legitimara.

 

É errado, hermeneuticamente, atribuir ao texto o que ele não exprime textualmente, não insinua nem permite deduzir. Qualquer ilação nestas condições, falsa e gratuita, manifesta o entendimento do intérprete para além do teor do texto. Ao invés de haver-lhe entendimento e a extração, dele, do seu sentido, há a imputação, a ele, do entendimento do leitor.

 

É o caso: não se averiguou haver a ação pecaminosa se constituído do coito ou do despertar da concupiscência, conforme resultasse do próprio texto, e não se averiguou nem se poderia averiguar neste sentido porque a escritura omite qualquer informação que o permitisse fazer.

 

Malgrado a ausência de qualquer elemento erótico, foi a sexualidade que se imputou ao pecado original, que passou a ser, falsamente, o que jamais foi. Ao invés de o exegeta encontrar no texto uma informação, imputou-lhe a sua imaginação e com isto falsificou-lhe o conteúdo.

 

A igreja católica recusou, permanentemente, a interpretação gratuita, falsa e popular, do pecado original como erótico, mesmo porque não poderia ser pecaminoso o ato que atendia à vontade divina, como instrumento da procriação, o apetite que leva a ele ou a sensação que dele se origina.

 

No próximo mês a segunda parte desse interessante artigo.
 

 

por Arthur Lacerda

arthurlacerda@onda.com.br

19/04/15

 

(enviado em 13/05/15)


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