Macaquinhos
por Arthur de Lacerda*
Olá.
Aqui vai artigo
novo, sobre a peça Macaquinhos, encenada em Cariri, Ceará, com 8
artistas nus e que vem causando celeuma. O texto está abaixo e
não em anexo.
Abraços.
Arthur Virmond de
Lacerda Neto.
arthurlacerda@onda.com.br
Intitula-se
Macaquinhos a representação teatral que, criada em 2011,
alcançou notoriedade em 2014, ao ser apresentada em São Paulo, e
que recrudesceu em 2015, mercê da sua apresentação, em novembro,
na 17ª Mostra Sesc Cariri de Culturas, no Ceará. Oito atores,
despidos, exploram, visual e tatilmente, o ânus, uns dos outros;
atribuíram-lhe função metafórica, de representar o desequilíbrio
social entre os países do hemisfério sul (que ele simbolizava) e
os emergentes.“Temos dificuldade em reconhecer (...) tantas
minorias, índios, mulheres, bichas, sapatãs, trans,
pretos, moradores da periferia e o cu dos corpos. ‘Macaquinhos’
se propõe a cutucar o que está latente, mas [de que] não se
fala. E isso é muito trabalhoso, pois exige mudanças”, exprimiu
um dos atores.
A finalidade da
apresentação não foi sexual nem ofensiva; não almejava
escandalizar os pudicos nem enausear, pela associação, fácil em
qualquer espectador, do ânus com as fezes. Destinava-se a
transmitir mensagem política, em que aquele, naturalmente oculto
pela anatomia, também se oculta pela cultura e se estigmatiza
pelo caráter chulo atribuído ao substantivo “cu” e pelo
impropério que a locução “tomar no cu” transmite, embora, no
caso desta, a ofensa se reporte à condição de súcubo (passivo na
penetração anal) e, portanto, à homossexualidade, o que soma a
homofobia ao vilipêndio do esfíncter
em causa.
Sem informações
preliminares acerca da metáfora entre países ou grupos sociais e
o seu símbolo, na encenação, a mensagem desta seria abstrusa;
mesmo com elas, ela pode parecer fracamente compreensível ou,
pelo menos, outras metáforas seriam mais perceptíveis e
torná-la-iam mais compreendida e, portanto, virtualmente mais
eficaz.
A nudez nos palcos
existe, no Brasil, há anos, com a peça “Macumba Antropófaga”,
encenada desde 2011 (ou antes), com personagens nus e com
invitação, no final, para que o público se dispa e se integre
aos atores. Já antes, em 1997, “Oh! Calcutá” foi representada em
São Paulo; em Ponta Grossa, em 2008 e, certamente, alhures, no
Brasil. Em outubro de 2015, a cantora Bárbara Eugênia
desnudou-se, no palco, em concerto seu, para pedir a
naturalidade da nudez.
Em “Macaquinhos”
foi inusitada a escolha de parte comumente subestimada do corpo
humano, como elemento central da apresentação, eleição que a
torna passível da increpação (expectável) de gosto mau ou
duvidoso, consoante a sensibilidade do espectador. Qualquer que
seja a avaliação neste capítulo, a peça cabe no conceito de
arte, entendida como manifestação figurada de valores, conceitos
e mensagens; ela veiculou a liberdade de concepção e de
realização, repugnou a alguns (não a mim), impressionou a vários
(não a mim), suscitou ponderações em alguns (como em mim).
Em virtude dos
rumores que circularam no dia da exibição, o Sesc (entidade de
direito privado, mantida pelos empresários do comércio e
promotora da peça) emitiu, no dia imediato (19 de novembro) nota
em que afirmou a destinação da exibição para, exclusivamente,
maiores de idade (cuja condição se conferiu por inspeção da
carteira de identidade de cada assistente); o início da peça às
23 h; haver evitado a difusão de qualquer imagem dela; repudiar
a postagem de imagens dela nas redes sociais.
As cautelas que o
comunicado do Sesc informa revelam o grau de caretice vigente,
no Brasil: a reserva etária de público, a recusa de divulgar
imagens e o repúdio da difusão destas nas redes sociais revelam
pudores que deveriam ser desnecessários e que, contudo, o Sesc
entendeu justificáveis, à espera de alguma animadversão, em
vista da tacanhice de mentalidades, em curso entre nós,
inclusivamente da parte de moços, certamente imbuídos de
princípios religiosos.
Há jovens caretas,
retrógrados em desfavor da liberdade e em prol dos preconceitos,
repressores ao invés de libertadores.
Necessitamos de
fraternidade, de honestidade, de espírito público, de virtude
republicana, de elevação; também de liberdade, de abertura de
mentalidades, de aceitação das diferenças, de laicidade, de
humanismo.
É mister
distinguir o que eleva do que rebaixa, o bom gosto do mau gosto,
a grosseria da delicadeza, o melhor do pior. Dentro destas
alternativas, há liberdade de criação artística; os atores são
livres de aceitarem a intervenção dramatúrgica em qualquer
região do seu corpo; o público é livre de assistir ao que lhe
atrai e de se esquivar do que lhe desagrada; todo o corpo é
digno por inteiro e não há, nele, partes indecorosas por
natureza: eis porque não irrogo a Macaquinhos nenhuma pecha de
imoralidade nem de despudor. Se ela se voltou a
chocar, tê-lo-á obtido em relação aos mais conservadores e
pudicos; se os seus realizadores pretenderam inovar, tê-lo-ão
logrado no sentido de expor a parte do corpo que se encontra
oculta por natureza, e por pudor, ainda entranhado na sociedade
brasileira.
Nem todos terão
compreendido a mensagem da peça, na verdade, abstrusa na
metáfora que a inspira, suscetível de incompreensões, capaz de
desconfortar e passível de expressão por modo diverso. Por outro
lado, é importante reiterar-se a liberdade artística;
insistir-se na naturalidade da nudez; recusar-se a vergonha do
corpo; rechaçar-se qualquer insinuação de censura teatral;
compreender-se o caráter móvel dos costumes; contrariar o
encaretamento das mentes e dos costumes; secularizar-se a moral;
dissociá-la de fundamentos teológicos; reconhecer-se a utilidade
do teatro como vetor de conteúdos suscitadores de reflexões,
sentimentos e debates, sejam confirmadores do etos vigente,
sejam dele destoantes, capítulo em que Macaquinhos demonstrou a
sua capacidade.
Na pior das
hipóteses, o gosto supõe o desgosto, lembrava Augusto Comte: que
Macaquinhos sirva, para os que a reprovaram, como exemplo do que
se deve evitar e, para quantos a apreciaram, como exemplo de
liberdade cênica. Vejo-a como meio direto de desencaretamento
das mentalidades em relação ao pudor e à aceitação do corpo e,
indireto, de provocar meditações, ao sabor da inspiração
individual. Para alguns, indignar-se é mais espontâneo do que
esforçar-se por compreender: aí, também, o mérito da peça, como
estímulo para a compreensão, malgrado exposta às emoções de que
foi objeto.
Arthur Virmond de
Lacerda Neto
22 de novembro de 2015.
(enviado em 28/11/15) |
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