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Jornal Olho nu - edição N°181 - Dezembro de 2015 - Ano XVI

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 Macaquinhos

por Arthur de Lacerda*

Olá.

Aqui vai artigo novo, sobre a peça Macaquinhos, encenada em Cariri, Ceará, com 8 artistas nus e que vem causando celeuma. O texto está abaixo e não em anexo.

 

Abraços.

 

Arthur Virmond de Lacerda Neto.

arthurlacerda@onda.com.br

 

Intitula-se Macaquinhos a representação teatral que, criada em 2011, alcançou notoriedade em 2014, ao ser apresentada em São Paulo, e que recrudesceu em 2015, mercê da sua apresentação, em novembro, na 17ª Mostra Sesc Cariri de Culturas, no Ceará. Oito atores, despidos, exploram, visual e tatilmente, o ânus, uns dos outros; atribuíram-lhe função metafórica, de representar o desequilíbrio social entre os países do hemisfério sul (que ele simbolizava) e os emergentes.“Temos dificuldade em reconhecer (...) tantas minorias, índios, mulheres, bichas, sapatãs, trans, pretos, moradores da periferia e o cu dos corpos. ‘Macaquinhos’ se propõe a cutucar o que está latente, mas [de que] não se fala. E isso é muito trabalhoso, pois exige mudanças”, exprimiu um dos atores.

 

A finalidade da apresentação não foi sexual nem ofensiva; não almejava escandalizar os pudicos nem enausear, pela associação, fácil em qualquer espectador, do ânus com as fezes. Destinava-se a transmitir mensagem política, em que aquele, naturalmente oculto pela anatomia, também se oculta pela cultura e se estigmatiza pelo caráter chulo atribuído ao substantivo “cu” e pelo impropério que a locução “tomar no cu” transmite, embora, no caso desta, a ofensa se reporte à condição de súcubo (passivo na penetração anal) e, portanto, à homossexualidade, o que soma a homofobia ao vilipêndio do esfíncter
em causa.

 

Sem informações preliminares acerca da metáfora entre países ou grupos sociais e o seu símbolo, na encenação, a mensagem desta seria abstrusa; mesmo com elas, ela pode parecer fracamente compreensível ou, pelo menos, outras metáforas seriam mais perceptíveis e torná-la-iam mais compreendida e, portanto, virtualmente mais eficaz.

 

A nudez nos palcos existe, no Brasil, há anos, com a peça “Macumba Antropófaga”, encenada desde 2011 (ou antes), com personagens nus e com invitação, no final, para que o público se dispa e se integre aos atores. Já antes, em 1997, “Oh! Calcutá” foi representada em São Paulo; em Ponta Grossa, em 2008 e, certamente, alhures, no Brasil. Em outubro de 2015, a cantora Bárbara Eugênia desnudou-se, no palco, em concerto seu, para pedir a naturalidade da nudez.

 

Em “Macaquinhos” foi inusitada a escolha de parte comumente subestimada do corpo humano, como elemento central da apresentação, eleição que a torna passível da increpação (expectável) de gosto mau ou duvidoso, consoante a sensibilidade do espectador. Qualquer que seja a avaliação neste capítulo, a peça cabe no conceito de arte, entendida como manifestação figurada de valores, conceitos e mensagens; ela veiculou a liberdade de concepção e de realização, repugnou a alguns (não a mim), impressionou a vários (não a mim), suscitou ponderações em alguns (como em mim).

 

Em virtude dos rumores que circularam no dia da exibição, o Sesc (entidade de direito privado, mantida pelos empresários do comércio e promotora da peça) emitiu, no dia imediato (19 de novembro) nota em que afirmou a destinação da exibição para, exclusivamente, maiores de idade (cuja condição se conferiu por inspeção da carteira de identidade de cada assistente); o início da peça às 23 h; haver evitado a difusão de qualquer imagem dela; repudiar a postagem de imagens dela nas redes sociais.

 

As cautelas que o comunicado do Sesc informa revelam o grau de caretice vigente, no Brasil: a reserva etária de público, a recusa de divulgar imagens e o repúdio da difusão destas nas redes sociais revelam pudores que deveriam ser desnecessários e que, contudo, o Sesc entendeu justificáveis, à espera de alguma animadversão, em vista da tacanhice de mentalidades, em curso entre nós, inclusivamente da parte de moços, certamente imbuídos de princípios religiosos.

 

Há jovens caretas, retrógrados em desfavor da liberdade e em prol dos preconceitos, repressores ao invés de libertadores.

 

Necessitamos de fraternidade, de honestidade, de espírito público, de virtude republicana, de elevação; também de liberdade, de abertura de mentalidades, de aceitação das diferenças, de laicidade, de humanismo.

 

É mister distinguir o que eleva do que rebaixa, o bom gosto do mau gosto, a grosseria da delicadeza, o melhor do pior. Dentro destas alternativas, há liberdade de criação artística; os atores são livres de aceitarem a intervenção dramatúrgica em qualquer região do seu corpo; o público é livre de assistir ao que lhe atrai e de se esquivar do que lhe desagrada; todo o corpo é digno por inteiro e não há, nele, partes indecorosas por natureza: eis porque não irrogo a Macaquinhos nenhuma pecha de imoralidade nem de despudor. Se ela se voltou a
chocar, tê-lo-á obtido em relação aos mais conservadores e pudicos; se os seus realizadores pretenderam inovar, tê-lo-ão logrado no sentido de expor a parte do corpo que se encontra oculta por natureza, e por pudor, ainda entranhado na sociedade brasileira.

 

Nem todos terão compreendido a mensagem da peça, na verdade, abstrusa na metáfora que a inspira, suscetível de incompreensões, capaz de desconfortar e passível de expressão por modo diverso. Por outro lado, é importante reiterar-se a liberdade artística; insistir-se na naturalidade da nudez; recusar-se a vergonha do corpo; rechaçar-se qualquer insinuação de censura teatral; compreender-se o caráter móvel dos costumes; contrariar o encaretamento das mentes e dos costumes; secularizar-se a moral; dissociá-la de fundamentos teológicos; reconhecer-se a utilidade do teatro como vetor de conteúdos suscitadores de reflexões, sentimentos e debates, sejam confirmadores do etos vigente, sejam dele destoantes, capítulo em que Macaquinhos demonstrou a sua capacidade.

 

Na pior das hipóteses, o gosto supõe o desgosto, lembrava Augusto Comte: que Macaquinhos sirva, para os que a reprovaram, como exemplo do que se deve evitar e, para quantos a apreciaram, como exemplo de liberdade cênica. Vejo-a como meio direto de desencaretamento das mentalidades em relação ao pudor e à aceitação do corpo e, indireto, de provocar meditações, ao sabor da inspiração
individual. Para alguns, indignar-se é mais espontâneo do que esforçar-se por compreender: aí, também, o mérito da peça, como estímulo para a compreensão, malgrado exposta às emoções de que foi objeto.

 

Arthur Virmond de Lacerda Neto
22 de novembro de 2015.

(enviado em 28/11/15)


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