') popwin.document.close() }

Jornal Olho nu - edição N°197 - Abril de 2017 - Ano XVII

Anuncie aqui

Naturalmente Nuas...

por Paulo Pereira

Abril/2017

 

Na vida natural, sem censuras, os diversos ciclos renovam-se constantemente e, no outono que chega timidamente, muitas árvores despem-se de suas folhas meio amareladas, que os ventos frios carregam, impudicos, talvez ainda repletos do ardor de um verão que não queria acabar... Percebo, enfim, que a natureza mãe é um belo livro aberto, que pede leitura atenta, sem preconceitos, sem julgamentos. E, na quietude do fim de tarde, ao revisitar meus velhos arquivos, meus alfarrábios, encontro, reconfortado, alguns exemplos ricos e preciosos do viver sem máscaras convenientes e sem mitos delirantes, várias histórias eloquentes de grandes mulheres nuas, de fêmeas vigorosas, sem medos, sem tabus. E renovo igualmente minha reflexão profunda a respeito dos temores, dos medos persistentes e dos pudores descabidos.

 

Recordo, então, as palavras sábias do notável Sir Winston L. S. Churchill, herói inglês da resistência ao nazismo e detentor do Prêmio Nobel de Literatura, que nos ensinou com simplicidade que “o que mais temos a temer é o próprio medo”... Por seu turno, Erich Fromm nos lembra que a sociedade humana anda enferma e que muita gente tem medo da liberdade... É, como observo, precisamente essa liberdade sem medo, lúcida, que podemos perceber claramente na vida e na obra, por exemplo, de Dora Vivacqua, de Carol Ann Duffy, de Gilka Machado, e até na personagem sensual chamada “Salomé”, 1939, de Menotti del Picchia, o erudito autor de “Juca Mulato”, 1917.

 

Ernst, Rudolph -

"The dance of Salome"

É muito importante registrar, aqui e agora, que, quando o homem atual começa a considerar a questão de sua própria viabilidade como espécie natural, a comunhão consciente e plena com nossa Natura Mater reveste-se de eventual urgência, acrescida da busca atenciosa pela sabedoria baseada, não em acúmulos de meras informações, mas no real conhecimento. Talvez por isso, premonitório, o modernista Menotti del Picchia nos deu a inquietante, espontânea e verdadeira “Salomé”, seu mais completo livro, segundo Mário de Andrade... Salomé sabe cultuar a liberdade sem véus, como afirma Menotti: “E a alegria de Salomé aumentou porque se lembrou de que era uma criatura livre... Saltou do Corisco. Amarrou as rédeas num tronco. Despiu-se”. Salomé estava totalmente nua, ao natural, à beira do rio de águas mansas, convidativas. Então, Salomé mergulha na água fresca, sente arrepios revigorantes, sacode a cabeça e vê, em paz, que as gotinhas d’água formavam muitos halos brilhantes em torno do seu corpo livre, alvo e nu, como nos diz Menotti, observador talentoso do belo. Salomé, perceptiva, comenta que achava gostosa aquela solidão consentida que vivenciava, solta. Menotti arremata, preciso: “Salomé estava nua, ali, entregue à sua liberdade, à sua ânsia de viver sem limitações, como ela era por dentro, plena e selvagem”... E Salomé, acrescento, costumava dizer que devia ter qualquer coisa de peixe ou de cobra, certamente de cobra, um sentimento que dirige meu pensamento, por certo, à grande Dora, Luz del Fuego, pioneira, bailarina do povo no dizer de Cristina Agostinho, fundadora do Movimento Nudista-Naturista do Brasil (1949), a nativa nua, a viver como a natureza quer, sem lenço nem documentos, mais uma fêmea naturalmente nua, a nossa Salomé de carne e osso, afinal, plena e selvagem, pedindo sempre menos roupa e mais pão!

 

Essa preciosa liberdade inata, toda nua, não cansa de mostrar sua força, na vida diária e na natureza, e até nas artes, na literatura. Consulto meus famosos alfarrábios, repito, e redescubro, extasiado, a poeta Carol Duffy, a talentosa e franca escritora da língua inglesa, que nos fala, em seus versos premiados, também da referida procura incansável da liberdade, de poder ser uma fêmea nua sem castigos. Carol possui uma obra vasta, inquietante, erótica, destemida. E, quando se fala em erótico, anotemos, é indispensável não fazer confusão com pornográfico... A nudez exaltada por Carol é a nudez natural, instintiva, inapelável, a nudez digna do índio como ressaltou Darcy Ribeiro, a nudez como traje de nascença, a nudez simples do nudismo já centenário... Os poemas de Carol mostram um brilho incomum e destacam a mulher nua, integralmente, longe de preconceitos e de lendas, longe dos palpites pudicos e dos clichês cansados.
Carol e Dora (Luz del Fuego) afirmam-se, cada uma com sua biografia, sem qualquer pudicícia de encomenda, sem espantos hipócritas diante do nu humano, tendo sempre a simplicidade como riqueza, a espontaneidade como virtude e a naturalidade como jeito de ser. Carol Duffy (“Standing Female Nude”), revela sutis presenças e energias eternas, quando nos sussurra:

 

Then the birds stitching the dawn with their song

have patterned your name...

Then the lawn lengthening and warming itself

is your skin...

Then a cloud disclosing itself overhead

is your opening hand...

Then the sun soft bite on my face

is your mouth”...

 

Eu reproduzo as palavras de Carol, sem cortes, sem traições, sem emendas, sem traduções, até porque, como diz a sabedoria, as almas entendem tudo melhor... E nós nunca esquecemos, por exemplo, o nome, a pele, as mãos e a boca de quem amamos, como lembra a poeta. A natureza mãe se impõe, soberana.

 

A Salomé de Menotti, Luz del Fuego e Carol Duffy são mulheres além do seu tempo, livres, sem compromissos com a mediocridade ou com a falsa erudição, o que me leva a falar de outra fêmea nua afirmada: Gilka Machado. De fato, no Segundo Caderno de “O Globo”, em 27/02/2017, Mariana Filgueiras escreve sobre Gilka Machado, sob o sugestivo título de “A Primeira Mulher Nua”. Gilka é considerada a pioneira da poesia erótica no Brasil, e, graças à iniciativa da jovem Jamyle Hassan, tem seus versos reeditados sob o título de “Gilka Machado, poesia completa”, um lançamento meio inquietante da Editora Demônio Negro... E, se Salomé, Luz del Fuego e Gilka são ditas antigas, elas se fazem eternas pelo talento, pelo exemplo, pela coragem, pela efetiva comunhão com o natural, o que inspirou, por certo, Carol Duffy, não tão antiga, a nos oferecer sua criação sensível e verdadeira, sem máscaras.

 

A poetisa Gilka Machado

Gilka é admirada por Mário de Andrade e por Carlos Drummond, o que até pode perturbar o sono dos fariseus pudicos, delirantes, que não se olham no espelho, especialmente sem roupa... Gilka faleceu em dezembro de 1980 e nos deixou uma obra consistente, polêmica, vigorosa. No velho e importante Jornal do Brasil, em 18/12/1980, Carlos Drummond escreveu: “As mulheres que gozam, hoje, de plena liberdade literária para cantar as expansões do instinto e as propriedades eróticas do corpo, deviam ser gratas a essa antecessora, viúva pobre que ganhava a vida com esforço e gostava de estar toda nua, completamente exposta à volúpia do vento”... Drummond nos diz tudo, a verdade, sem medo da nudez, porque valor e talento não se encontram facilmente, como xepa, numa feira qualquer.

 

Gilka, feminista e nudista, queria o vento no seu corpo inteiro, conforme a natureza, como Luz del Fuego preconizou sempre. E Gilka lançou, em 1922, o livro “Mulher Nua”, elogiado também por Mário de Andrade, um registro que faço para os estudiosos. Gilka, um dia, desabafou: “Amei tantos, a todos e a tudo que não sobrou amor para mim mesma”... Gilka viveu intensamente e fez da vida uma grande doação, um despojamento integral, corpo e alma nus, infinitos. Gilka feminista, poeta, ativista política, amante da natureza, do nu sem falsos pudores, é uma boa reflexão, ainda hoje, inclusive para alguns afoitos pernósticos, que falam de nudismo e de naturismo como distintos em essência, como antagônicos, um disparate infeliz, uma colocação sem qualquer respaldo comprovado histórico-filosófico dentro do Movimento. Um país, ou um processo, ou comportamento, sem memória datada, sem história, sem referência, é apenas um edifício frágil, um castelo de areia.

 

Die Nacktheit

de Richard Ungewitter -

capa da edição de 1908

A real identidade nua do homem precisa ser bem conhecida e reafirmada. Não podemos esquecer o pioneiro Richard Ungewitter e sua consagrada obra “Die Nacktheit”, “A Nudez”, por exemplo, reeditada, em inglês, como “Nakedness”, em 2005, nos Estados Unidos, com longa introdução de Cec Cinder, autor reconhecido de “The Nudist Idea”, anotemos. A capa da edição em língua inglesa escreve o seguinte: “Nakedness, The First Nudist Book; The Old Testament of Nudism, by Richard Ungewitter (1868-1958), Father of Modern Social Nudism”... Então, não há “naturismo” sem “nudismo”, e a filosofia do nudismo, segundo W. Welby, é apenas natural!...

 

As mulheres todas nuas, aqui referidas, são um grito forte de liberdade sem medo, consciente, numa referência para quem sabe viver naturalmente.

 

Em tempo: Tenho em mãos, recolhido dos meus alfarrábios, um exemplar original do livro “Mulher Nua”, de Gilka C. M. Machado, edição de 1922 (quase um século), Editor Jacintho Santos, Rio de Janeiro, uma joia literária, da qual faço um breve registro:

 

“Numa nuvem de renda,

Musa, tal como a Salomé da lenda,

Na forma nua,

Que se ostenta e estua,

Sacerdotisa audaz

Para o amor de que és presa,

Rasgando véus de sonho, dançarás

Nesse templo pagão da Natureza!”

 

E, com ênfase, certamente last but not least, relembremos a bela matéria do suplemento “Ela”, de “O Globo”, 09/04/2016, focalizando a atriz Letícia Spiller, natural, toda nua, página inteira, intérprete talentosa de “Dorotéia”, de Nelson Rodrigues, a nudez sem pudor, sem culpa, desapegada, um exercício de despojamento, igualmente no templo pagão da Natura Mater, como a Salomé de Menotti, como a musa Luz del Fuego, mais uma fêmea nua, Naturalmente!
 

(enviado 10/04/17 por Paulo Pereira)


Olho nu - Copyright© 2000 / 2017
Todos os direitos reservados.