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Jornal Olho nu - edição N°199 - Junho de 2017 - Ano XVII |
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Íntima e Naturalmente
Paulo Pereira
Nesse começo de inverno, certamente com tardes e noites mais frescas, sobretudo, convidando a reflexões e releituras atentas, recordo, feliz, uma das longas conversas, que mantive com a minha velha amiga, a livreira Vana, criadora e entusiasta da famosa Livraria Leonardo Da Vinci, no Rio de Janeiro. Falamos, na ocasião, com ênfase, das hipocrisias e da sexualidade através dos tempos, como a história registra. Nesse bom papo, tivemos também a ilustre companhia do grande Moacyr Scliar, escritor afirmado, sempre com suas observações inteligentes. Eu, então, salientei, uma vez mais, a questão da natureza e da cultura humana, do natural e do convencional. Infelizmente, pouco tempo depois desse encontro, dessa conversa produtiva, Scliar nos deixou, e entrou para a história brilhante da nossa literatura.
A propósito, registro um livro, de 2011, Editora Planeta, da autoria de Mary Del Priore, chamado “Histórias Íntimas”, que pede uma consideração lúcida, ainda que rigorosamente breve. Nesse nosso país, mais perplexo do que nunca, afogado em desencontros éticos, ad nauseaum, para dizer o mínimo, país meio surrealista e “país da amnésia”, como denuncia Zuenir Ventura, a obra de Mary é atual, rica, perspicaz, sem concessões a qualquer moralismo barato. História e verdade em vez de pós-verdade, de narrativa descabida. E não por mera coincidência, Moacyr Scliar é quem faz o prefácio do livro de Mary, uma página de síntese madura, perceptiva, definidora, bem ao estilo direto de Scliar, que vai logo observando que Mary, sem esquecer o aspecto factual, busca com talento o lado humano dos acontecimentos...
A autora, como destaca Scliar, nos fala de história, mas salienta a sexualidade e o erotismo. Seria válido afirmar que Mary desnuda os fatos e nos faz ver o pudor com lentes sem miopias ou estrabismos. Mary menciona, com ênfase, os colonizadores do Brasil, os índios, os escravos, as repressões culturais. Scliar, conciso, enfoca a chamada revolução sexual, o movimento feminista e até a censura ditatorial, todos aspectos bem tratados por Del Piore, concluindo que o livro de Mary nos encanta...
O livro é uma
referência gostosa de ler, um forte argumento contra a
superficialidade reinante nas últimas décadas, aqui e no mundo, um
sopro forte de reflexão e de saber, que não se encontra facilmente,
especialmente sem o auxílio direto dos bons textos. Na introdução,
Mary afirma que vivemos o instantâneo, frequentemente tendo o
exibicionismo como motivação. Anotemos. Sexo e nudez, mesmo com toda a tecnologia, continuam sendo tabus em muitas esferas, sobretudo, porque a ignorância veste capas de virtude. Existe pecado na natureza?... Mary destaca que, especialmente entre os séculos XVI e XVIII, a noção de intimidade mostra-se distante da que percebemos nesse início do século XXI. Mary nos diz: “A vida quotidiana naquela época era regulada por leis imperativas. Fazer sexo, andar nu ou ter reações eróticas eram práticas que correspondiam a ritos estabelecidos pelo grupo no qual se estava inserido... Leis eram interiorizadas. E o sentimento de coletividade sobrepunha-se ao de individualidade”. Mas o individualismo, às vezes exacerbado, é a nossa marca de vida atual, de informação excessiva e pobre conhecimento, a palavra desconstruída a pretexto do progresso, a nudez vendida como produto de supermercado, a ciência banalizada, inclusive com a utilização de conceitos científicos como modismos, como comodismos verbais idiotas, globalizados, até mesmo nas mídias, em busca do lucro fácil, muitas vezes do impropriamente chamado de “correto”...
O natural é distorcido, deixando o dito “paraíso” inicial como lembrança vaga, até ridícula. A beleza dos corpos nus dos nossos índios, como relembra Mary, foi esquecida, guardada em baús mofados da história, como se os homens, primatas, fossem anjos vestidos. Os portugueses, chegando ao Brasil, em 1500, ressaltaram essa beleza índia: “Suas vergonhas tão nuas e com tanta inocência assim descobertas, que não havia nisso desvergonha alguma”...
De novo, o sentido
pleno da palavra “naturalmente”, relativa à natureza, ao natural, ao
que nos é inato, sem julgamentos! Mary nos faz pensar seriamente a
respeito de nossa identidade, de nossa verdade nua, como nos disse a
pioneira Luz del Fuego. Os colonizadores recém chegados encontraram
uma realidade viva, que não pode ser negada, menosprezada. Mary,
lúcida, comenta: “Eles encontraram povos que tinham outras noções
quanto à nudez, às funções corporais ou à sexualidade. Aos olhos dos
europeus, os “selvagens” não tinham sido ungidos pela Graça
Divina”... Mas os portugueses sentiram efetivamente o que Mary chama
de “cheiro do prazer”, quando nos fala, por exemplo, de higiene, é
verdade, mas sem esquecer a força da natureza, até porque, apesar de
tudo, os nossos índios se mostravam saudáveis, fortes, reprodutivos.
Mary Del Priore
desenvolve um texto respaldado, fiel aos fatos históricos, sem
invencionices oportunistas. Nudez, sexo, higiene, desejo, pecado,
censuras, tudo reunido para informação e reflexão do leitor, que
busca conhecimento. Nesses tempos de individualismo radical, mas de
fanatismos alucinados, por desespero e falta de referência, seria
oportuno pensar um pouco mais nas nossas essências, nas nossas
verdades naturais, que nos organizam e sustentam através dos
séculos. O livro de Mary é um convite irrecusável à nossa melhor
consideração atenta, falando-nos igualmente de pedofilia, de
homossexualidade e doenças, de beatos e de libertinos, de sexo
natural e sem culpa e de sexo contido, delimitado.
Quando muitos
incautos, sem considerar a história, a ciência, proclamam divisões,
constroem muros ocos, teimando em procurar ver a nudez como exceção
ou ofensa, sofismando de forma preciosa ao distinguir nudismo e
naturismo, mas curiosamente sem ir fundo nos conceitos naturais
consagrados, e sem respeitar os fatos, por exemplo, nem se submeter
às forças da natureza indomável, é interessante, e refrescante para
a memória, admirar o belo encarte ilustrado do livro de Del Priore,
onde fica fácil constatar que nudez e sexo são eternos, próprios dos
homens, independentemente de quaisquer subjetividades, de quaisquer
artifícios. Efetivamente, entre as páginas 128 e 129, há exemplos
fartos de que o natural pode ser vestido, camuflado, censurado, mas
jamais desaparece ou deixa de prevalecer, afinal.
E, para os estudiosos
do comportamento humano, do nu inapelável, saliento o que o livro de
Mary nos mostra, exibindo a reprodução de uma publicação chamada “O
Rio Nu”, datada de janeiro de 1910, material de fundo humorístico,
ressaltando trabalhos artísticos de mulheres nuas em poses eróticas,
e desejando “boas entradas”...
Na parte final do seu
livro, Mary anota constatações importantes, que não devem ser postas
de lado. Mary nos lembra que, hoje, está ocorrendo uma brutal
individualização da família, uma passagem do coletivo ao singular,
do grupo ao indivíduo... A sexualidade parece que liberou-se das
exigências de reprodução, sobretudo em face dos modernos
contraceptivos, ressaltando-se o papel fundamental da ciência, dos
estudos da sexualidade, sobretudo, o que não deve invalidar o bom
senso, afinal, o prestígio do respeito e do equilíbrio para uma vida
melhor, sem fundamentalismos ou radicalismos, espera-se. Mary Del
Priore é direta: “E quem somos? Indivíduos de muitas caras... Em
público, civilizados (nem sempre); no privado, sacanas. Na rua,
liberados, em casa, machistas. Ora permissivos, ora autoritários”.
Somos grandes contradições, como resultado. Até quando?...
Até quando, ufa,
incentivaremos um antagonismo definitivo entre ciência e
espiritualidade? Parece que anda faltando conhecimento, sabedoria.
Até quando agrediremos os índios, os diferentes, os indefesos? Até
quando tentaremos tolamente recusar o corpo, a nudez, o nu do
nudismo, elucubrando teses pobres, sofismas pudicos,
preconceituosos, meias-verdades para consumo fácil? Uma leitura,
como a do texto de Mary, pode nos iluminar, mostrando, não meros
atalhos, mas caminhos seguros.
(enviado 12/06/17 por Paulo Pereira) |
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