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Jornal Olho nu - edição N°207 - Fevereiro de 2018 - Ano XVII

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Nudez: Múltiplas Percepções

 

Paulo Pereira
Janeiro/ 2018

 

Registro atentamente um artigo de Daniel Lisboa para o “Uol”, focalizando a chamada “versão nua” do ioga, milenar prática da Índia distante, sob o título chamativo de “Pelado na Ioga”... Nessa época conturbada em que vivemos, plena de descaminhos, violências gratuitas e até de patrulhamentos radicais da moral conservadora, abrir janelas libertárias e lúcidas parece iniciativa preciosa. Em contraponto à pudicícia fabricada, o grupo “Nós Naturistas” organizou uma grande aula aberta, de “nude ioga”, aos nudistas e simpatizantes, mas efetivamente apenas trinta desinibidos compareceram, entre eles o repórter Daniel, que afirmou: “Vestido, me senti ridículo entre os peladões”... São, pois, muitos os olhares sobre o corpo, sobre a nudez, pedindo nossa melhor percepção. E Daniel comenta que “naquela aula de ioga, estavam todos os meus fantasmas de aceitação, assombrando minha psique imatura”. Então, fica evidente que, mais uma vez, uma reflexão séria se impõe, até porque é indispensável, no século XXI, questionar todos os fantasmas em confronto com a verdade, com o conhecimento, com a realidade dos fatos.

 

Observemos, de passagem, que Daniel, em seu texto, vai direto ao ponto, afirmando, corajoso, que “você pelado (talvez fosse melhor dizer nu) é você de verdade”, ressaltando ainda que “o propósito da “nude ioga” é justamente naturalizar a nudez, nos livrando dessa máscara diária das roupas”... Vivemos, de fato, de longa data, imersos num grande baile de máscaras, ao arrepio da natureza e da ciência, uma distorção obtusa, que se assemelha a um tiro no pé... Até quando? Daniel, meio confuso, acaba chamando uma eventual ereção do pênis de “impulso básico”, conceito impreciso, superficial, mas conclui, objetivo, dizendo que a experiência da “nude ioga” serviu para rejeitar a sexualização automática da nudez. Fica claro, afinal, como teria dito a atriz Ana Zanesco, que é essencial a busca por si mesmo.

 

Daniel faz colocações francas, um tanto rudes para alguns, mas acima de tudo muito oportunas e valiosas: “Quando o assunto é nudez, o brasileiro é, antes de tudo, um bobo. Caso você se ofenda, aqui vai um mea culpa: antes de morar na Áustria e na Espanha, eu também agia como o macho brasileiro ao ver pessoas peladas, um misto de criancice com euforia grosseira. Só me dei conta disso ao visitar, com minha então namorada austríaca, as praias naturistas do rio Danúbio, ao redor de Viena; lá encontrei famílias inteiras, vovós com seus netinhos, pelados com uma naturalidade de fazer inveja ao Oscar Maroni..."

 

"Quando fui à Dinamarca, cobrir o festival musical de Roskilde, vi jovens nadando pelados num lago. E não era algo que chocasse. Como é possível que eu, nascido em um país tropical, com quase 7,5 mil quilômetros de costa, ainda tenha pudores com a nudez? O Brasil só tem oito praias de nudismo oficiais”... Eis aí uma ótima lição de casa, sobretudo para uma minoria vesga, que se perde em polêmicas vazias, querendo, quem sabe, discutir o sexo dos anjos. Essa lição espontânea é um convite à leitura idônea, ao estudo do comportamento humano, à reflexão profunda sobre os fundamentos do Movimento, desde Ungewitter, sem palpites e mitos tolos. Daniel alerta a todos, dizendo que “a nudez precisa parar de ser tratada de maneira tão rasa”...

 

A prática do ioga nos remete à velha Índia, país de contrastes fortes, de encantamentos sutis, de mistérios sempre cultuados, onde os famosos monges Jainistas, os Digambara, vivem totalmente nus, despojados de corpo e alma. Precisamos enriquecer nossa percepção em relação à nudez, sublinhando que a natureza não veste ninguém... Nenhum de nós, afinal, nasce vestido, e a nudez dos túmulos vai até os ossos ou até as cinzas... Quem tem medo da nudez, da vida sem máscaras? Tratemos de responder sem falsos pudores, sem falsa erudição, sem tolices de rodapé de página.

 

Recordo, aqui e agora, a propósito, um belo artigo do confrade Jorge Bandeira, escritor e dramaturgo, naturista amazônico, intitulado “A Nudez Iluminada de William Blake”, repleto de colocações pertinentes, um texto definitivo. Bandeira, objetivo e respaldado, nos fala que “um bardo inglês, poeta, escritor, gravurista, inovador das artes plásticas, praticamente um “iluminando”, forjou com sua mente além daquele tempo um olhar paradigmático sobre Força da Nudez, com sua obra de intenso vigor”.

 

Jorge Bandeira é o autor do artigo "A Nudez Iluminada de William Blake"

É verdade. Blake, ao retratar corpos nus, certamente homenageou a natureza, sem pedir julgamentos (como tenho proposto de longa data), distante das censuras medievais e sem medo de mostrar verdades nuas. Bandeira observa, perspicaz, que Blake “via a nudez dentro de uma normalidade verdadeiramente humana”, vale dizer, natural. Mas o amigo Bandeira não se contém, sente-se meio extasiado por uma gravura feita por Blake para o álbum sobre o “Paraíso Perdido”, de John Milton, e nos fala até do corpo transbordante de energia, “uma perfeita geometria de um corpo que se revigora em sua nudez cintilante”... Para Bandeira, estudioso, a nudez, nas criações de Blake, é uma constante busca pelo infinito do corpo, reafirmando o que o poema proclama: “Se as portas da percepção fossem abertas, o homem veria o que é e o que sempre foi: infinito”...

 

O gênio de William Blake, enfatizemos, quer os homens e as mulheres irmanados, masculino e feminino numa só grandeza, o belo distante dos pudores nervosos, o que, afinal, pode nos lembrar a ver o mundo sem estrabismos intelectuais, a enxergar, por exemplo, o Nudismo sem superficialidades descabidas. Recorro, feliz, ao índio poeta, ao companheiro Bandeira, tentando fazer minhas as suas palavras: “A nudez, em William Blake, é sua companheira de todas as horas, de todos os matizes, em todas as suas qualidades de desmascaramento de preconceitos e de avanços civilizatórios, da convivência entre os corpos, sem as imposições mantidas por séculos têxteis, que tradicional e conservadoramente amarram as conquistas da humanidade”. Como, então, ser naturista sem desmascarar preconceitos, sem valorizar a nudez, sem aceitar o nu do nudismo?

 

Os corpos nus, como destaquei no título de um dos meus livros, são expressões irrecusáveis da nossa realidade. E, se o corpo nu se faz arauto de uma aurora libertadora, como salienta Bandeira, só nos resta sublinhar, em cores vivas, a força do fogo precioso da verdade nua, a figura icônica de Luz del Fuego, pioneira, premonitória, libertária, sem medos, sem pseudo saber.

 

Anotemos aqui uma pequena matéria publicada no Jornal “O Globo”, em 05/01/2018, na Coluna do Ancelmo Gois: “Aguinaldo Silva, o grande novelista, ressuscitará, em São Paulo, uma figura icônica da vida carioca: Luz del Fuego (1917-1967). A dançarina e atriz, pioneira do Nudismo, será personagem de uma peça escrita por Júlio Kadetti, sob supervisão de Aguinaldo, que inaugurará em São Paulo, em 05 de março, a Casa Aguinaldo Silva de Artes. A peça mostrará duas Luz del Fuego: a de 25 anos, no auge da fama e amante de vários políticos da época, conta Aguinaldo, e a dos últimos anos, que morreu assassinada aos 50 anos, na Ilha do Sol, Baía de Guanabara”...

 

Contrariando todos os cansativos fariseus de plantão e eventuais focas delirantes que tentam insinuar que Luz fez sucesso sem talento, o dedicado Aguinaldo Silva, estudioso e inteligente, promove uma autêntica retrospectiva e faz uma homenagem justa à figura histórica de Dora Vicacqua, criando arte qualificada, certamente porque, como nos disse o saudosa e notável Ferreira Gullar, a arte existe porque a vida não basta... As conhecidas atrizes Luana Piovani, Ana Paula Arósio, Leona Cavalli e Bárbara Paz, estão cotadas para viver a pioneira nudista, a mulher fora da jurisdição comum do mundo, uma pessoa além de seu tempo, feminista, nudista-naturista, amiga dos desvalidos, a conhecida musa de Paquetá, a inesquecível Luz del Fuego. Numa outra matéria publicada na internet, a respeito da iniciativa de Aguinaldo Silva, está escrito o seguinte: “Diferentemente do filme lançado em 1982, com Lucélia Santos (obra de Davi Neves), que seguia a linha da chamada pornochanchada, o novo espetáculo teatral promete ir bem além da nudez e jogar holofotes sobre a luta de uma mulher vanguardista na militância pelos direitos ao divórcio, à orientação bi e homossexual e à liberdade de expressão”...

 

É chegada a hora, pois, de fazermos o resgate da grande verdade nua, da pioneira Luz del Fuego. Onde ficaria uma possível falta de talento? Provavelmente na cabecinha oca dos príncipes da pós-verdade. Reafirmando o que eu disse no meu artigo intitulado “Dora Vivacqua, Luz Centenária”, 2017, Jornal Olho Nu, Luz del Fuego, sempre talentosa, vive! Ela vive nas mentes e nos corações das pessoas livres, no respeito ao diferente, na lembrança dos que souberam conviver com ela, na coragem do despojamento integral de corpo e alma, nos anais afirmados das lutas e das filosofias libertárias e até, magia e brilho, nas lendas da ribalta...

 

Na busca decidida e serena das melhores percepções da nudez humana, devemos preferir, em vez de palpites e da tagarelice fútil, o silêncio das línguas cansadas, como cantou Elis Regina. As obras de arte, certamente incluindo o teatro e a literatura, exigem uma leitura histórico-crítica, credenciada, se possível isenta. Em vez dos tabus com os prazos de validade vencida, prestigiemos o conhecimento científico. O chamado prisma medieval, que cresce assustadoramente na sociedade atual, poderia ser representado, afinal, por um grande sólido opaco, tornado incapaz de decompor e de transmitir as luzes do saber; esse prisma é certamente um sólido mal formado por polígonos desiguais, desenhados pela pós-verdade, na sua base, apresentando as laterais deformadas, constituídas por paralelogramos distorcidos... Quando focalizamos a nudez, a liberdade, a diversidade e o feminismo, por exemplo, parece válido reproduzir algumas colocações da jornalista Miriam Leitão, em “O Globo”, 11/01/2018: “Só acha que feminismo é modismo quem não entendeu o mundo em que vive, quem não parou para ouvir, quem prefere se perder em mais um desvio, se enganar em mais um mito, se atrasar outra vez”...

 

Lembremos, então, por analogia, que o nu natural, o nu de nascença e o nu do Nudismo não pedem julgamentos nem acolhem ou se baseiam nos mitos, nos enganos, nos atrasos ou nos desvios, sobretudo, se não queremos agredir a natureza, toda a essência da vida que conhecemos. A consciente prática nudista-naturista não deve ser vista como um simples modismo, uma onda passageira nem como fortuita transgressão, a exemplo do que infelizmente ocorre algumas vezes entre afoitos. Precisamos afastar nosso olhar perceptivo, mesmo algumas vezes distraído, para bem longe dos referidos prismas medievais...

 

Em tempo: para os interessados ou estudiosos, como subsídio para uma melhor reflexão, julgamos modestamente oportuna uma serena releitura do ensaio “Da Identidade Nua”, 2015, Jornal Olho Nu, segunda parte, sob o título de “O Pensamento Nu”, em particular às páginas 52-59, a fim de dirimir possíveis dúvidas preciosas a respeito dos usos e conceitos dos termos “nudismo” e “naturismo”. Vale ressaltar, com ênfase, que os ditos termos não configuram concretamente qualquer contradição ou possível antinomia, o que fica corroborado, inclusive, pelos registros dos melhores dicionários da língua portuguesa, oficialmente prestigiados, não por acaso em consonância direta com os estabelecidos postulados histórico-filosóficos do Movimento, segundo inúmeros autores idôneos.

 

Anotemos, de passagem, o que nos disse o notável escritor e pioneiro norte americano Cec Cinder (“The Nudist Idea”): “uma das maiores hipocrisias do homem é ver e ficar fascinado com nus artísticos, mas negar o corpo e a nudez no dia-a-dia”... Não podemos, afinal, prestigiar qualquer leitura literal ou ideológica dos termos “nudismo” e “naturismo”, mas sim preferir, por bom senso, as sínteses, as harmonias e os consensos. O ser humano, como demonstra respaldadamente o consagrado biólogo Desmond Morris, em “The Naked Ape”, não é um mero anjo sexuado e bem vestidinho, mas um primata nu, mortal, imperfeito, em constante evolução como os demais seres vivos do planeta Terra.

 

Concluímos que, para enxergarmos adequadamente a nudez, cumpre decididamente utilizar as lentes claras do conhecimento. A boa reflexão, recordemos sempre, exige basicamente um compromisso sério com o fato, a fim de conseguirmos um mergulho lúcido para dentro de nós mesmos, sem amarras, mas com o prestígio da sabedoria. Acima de qualquer percepção particular, é indispensável admitir que a nudez natural não é um problema.
 

 

(enviado em  25/01/18 por Paulo Pereira)


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