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Jornal Olho nu - edição N°219 - Fevereiro de 2019 - Ano XIX

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Vida Livre: Conforme a Natureza...

 

Paulo Pereira

 

A conceituada revista naturista alemã chamada “Freies Leben” (Vida Livre), da qual fui correspondente oficial para o Brasil em 1964, consagra precisamente a expressão “vida livre”, e acrescenta, no seu subtítulo, que era uma publicação voltada para o naturismo e para a reforma de vida, fato que nos deve servir de inspiração e até de argumento, sobretudo, de referência datada.
 

O consagrado biólogo evolucionista britânico, nascido no Quênia, Richard Dawkins, observa, em um de seus premiados livros “O Capelão do Diabo” (“The Devil’s Chaplain”) - Companhia das letras, 2005 -, de forma respaldada, que, “se há compaixão na natureza, ela é unicamente acidental; a natureza não é bondosa nem cruel: é indiferente”... Então, a delicadeza e a crueldade nascem, pois, do mesmo imperativo, colocação precisa que nos convida a uma profunda reflexão. A nossa mãe natureza, como tenho salientado em muitos textos, não pede julgamentos e todos os bichos-homens são partes inseparáveis dessa mesma natureza, anotemos desde já. Por tudo isso, precisamos, especialmente nesses tempos conturbados, procurar perceber a essência do que se entende por “Vida Livre”, quer dizer, vida natural, sem preconceitos, sem mitos, sem máscaras, sem expedientes de intolerância. Saber viver livremente constitui um longo aprendizado, uma conquista, que exige estudo, serenidade, despojamento integral de corpo e alma, sobretudo.
 

No cenário rico e documentado do Movimento Nudista-Naturista, da histórica vivência naturista, que valoriza fundamentalmente a noção de uma vida livre, toda nua, é pertinente, aqui e agora, recordar, ainda que de passagem, a obra histórica de Dora Vivacqua, a pioneira Luz del Fuego, 1950, intitulada “A Verdade Nua”... Essa verdade nua, tão preciosa, e tão rara nos dias aflitos que vivemos, nos lembra que é preciso, até para ser feliz, viver conforme a natureza, “as nature intended”, como nos disseram em sua obra clássica, os autores ingleses Clapham e Constable, 1982, Elysium Editions, Londres. Precisamos, mais do que nunca, tentar de fato conceituar e definir, de forma clara, a questão de nossa identidade como humanos, e como naturistas, sem concessões cômodas às subjetividades vaidosas e à mediocridade reinante, como afirmou o saudoso ator Walmor Chagas...

 

Ratificando enfaticamente o que foi argumentado no meu ensaio “Da Identidade Nua”, 2015, Jornal Olho Nu, mostra-se inadiável voltar nosso olhar perceptivo para a nossa realidade objetiva, sem lendas ou mitos, sem versões distorcidas, definitivamente sem o tabu irracional da nudez, que é nosso traje de nascença. A nudez humana não é uma simples extravagância, uma louca transgressão, e não deve servir de pretexto para a construção esdrúxula de sofismas para desconstruções cínicas da filosofia nudista-naturista já centenária. A identidade e a práxis naturistas estão vinculadas, diretamente ligadas, contextualizadas, pela história documentada do Movimento. A práxis, em síntese, configura o exercício de uma filosofia de vida voltada para o natural, inclusive como consagram os melhores dicionários de várias línguas, sem exclusões pudicas ou ideológicas. A filosofia de vida naturista, por definição e conceito, elege o natural como princípio e fundamento. Por isso, nunca existiu, de fato e de direito, um naturismo dito ideológico, um naturismo religioso, um naturismo sem nudismo, que configura sua essência doutrinária. Efetivamente, não há, pois, qualquer demasia na repetição formal do que anotam os melhores dicionários: “Naturismo é a valorização dos agentes da natureza, especialmente como meios terapêuticos; filosofia de vida que recomenda um maior contato com a natureza, e nudismo”... O estreito contato com a natureza (indomável, indiferente e sem vestes) e a efetiva prática nudista estão definidos e recomendados, sem colocações ideológicas, sem julgamentos culturais mofados. Então, quem efetivamente menospreza a força da natureza, e tenta ignorar a memória histórico-filosófica do Movimento Naturista, desde Ungewitter, inviabiliza, de fato, seus possíveis melhores argumentos.
 

Devemos, com toda a prioridade, prestigiar a racionalidade, o bom senso, o conhecimento científico, a voz da natureza, em vez de devaneios pueris. A natureza é indiferente, nunca vestiu ninguém, e não se diga que seria arrogante por isso. Ser naturista, afinal, é viver conforme a natureza! A identidade naturista pressupõe simplicidade, despojamento integral, não-violência, comunhão fraterna pela nudez social (Nudismo Social Moderno), sem quaisquer pruridos pudicos, medievais. E, quando falamos de não-violência, é mister considerar seu profundo e complexo significado. A propósito, no “Segundo Caderno” de “O Globo”, 23/12/2018, Steven Spielberg nos alerta sobre as muitas formas da violência, da intolerância, fato que pede a consideração cidadã de todos, notadamente dos naturistas. O tragicamente famoso “Holocausto”, o massacre ocorrido na Segunda Guerra Mundial, não pode ser ignorado, menosprezado, como um episódio histórico comprovado, até porque, vale sublinhar, uma das formas piores de violência é precisamente a distorção, ou negação, dos fatos históricos, colocação que vale também para a nossa referida história nudista naturista documentada. A historicidade não é uma simples questão de modo de pensar, de opinião pessoal ou da aplicação do direito democrático de divergir, mas apenas uma questão de fatos datados, testemunhados, cientificamente vistos e analisados. Steven Spielberg, na matéria publicada em “O Globo”, nos diz que “não fazemos o suficiente para combater o ódio”... Há muita gente que vive do ódio, da pós-verdade, da intolerância, embora dizendo-se democrata, injustiçado, meio esquecido. O cultivo dos preconceitos constitui violência maior, silenciosa, incontrolável. Spielberg acrescenta: “Ódio é ódio, e o ressurgimento dele nos torna a todos responsáveis uns pelos outros. Ninguém mais pode ser um expectador”... A liberdade sem medo pede para ser conquistada. E não é ficando calado, aceitando a versão fictícia no lugar do fato afirmado, que iremos realmente vivenciar nossa libertação. Negros, gays, lésbicas, judeus, e nudistas naturistas, acrescentemos, devem lutar irmanados para procurar viver conforme a natureza, livremente.
 

O afirmado amigo naturista Pedro Ricardo, editor do Jornal Olho Nu, atual presidente da FBrN – Federação Brasileira de Naturismo, por ocasião do lançamento do meu livro “Sem Pedir Julgamentos, Conforme a Natureza”, 2011, reproduziu um longa e esclarecedora entrevista que concedi a ele, matéria intitulada “Paulo Pereira, A História Viva”, integralmente, na edição 131 do Jornal Olho Nu, datada de outubro de 2011, matéria que pode modestamente ajudar a entender melhor toda essa questão relativa à história, teoria e prática, do Naturismo.
 

Necessitamos urgentemente fazer o real resgate do natural, da natureza toda nua, dos instintos. Viver livremente está longe de ser uma utopia, desde que haja conscientização e comprometimento. Parece-me relevante e oportuno, quando focalizamos a questão do natural, e em particular a vivência naturista, definir o que preconizo, de longa data, quer dizer, a importância da construção concreta de um novo modelo civilizatório que una realmente homem e natureza, de forma objetiva, tendo o natural como base ou referência. Luto pela organização e confecção de projetos arquitetônicos voltados para um maior contato com a natureza, incluindo ampla reforma urbanística, que compreenda, inclusive, a construção de amplas cidades-jardins e de grandes parques onde, especialmente pelos trabalhos de manejo, sejam delimitadas áreas especiais destinadas à prática nudista-naturista, com aplicação e desenvolvimento de terapias naturais e de esportes olímpicos. Essa minha proposta está baseada, inclusive, nas obras de Ungewitter e de seus mestres históricos, Haeckel e Bölsche do antigo Movimento “Volkische”, no século XIX. Observemos sempre que naturismo não é um exercício de ficção onírica, conservadora, pudica, dogmática, mas, sobretudo, uma filosofia natural de vida integral, sem pecado. Já o grande filósofo F. Nietzsche, por exemplo, soube definir muito bem essa questão: “A noção de pecado foi inventada ao mesmo tempo que o instrumento de tortura que o completa; a noção de livre arbítrio, para confundir os instintos, para fazer da desconfiança, em relação aos instintos, uma segunda natureza”... A natureza é única e indomável, indiferente aos caprichos e invencionices dos homens. A boa práxis naturista necessita de mais espaços nobres, de mais praias e jardins adequados, e de menos estórias intolerantes.
 

Numa pequena carta, aqui registrada com ênfase, enviada ao saudoso companheiro Luciano Canabrava, a pioneira Luz del Fuego, Madrinha da Rio-Nat – Associação Naturista do Rio de Janeiro, fala com carinho e inteira propriedade a respeito do que ela chamou de “amigos da natureza”. Para os estudiosos, eis aqui a carta, datada de 1967, pouco antes da trágica morte de Luz:
 

“Ilha do Sol, Paquetá, 10/04/1967;
 

Prezado Amigo da Natureza.
 

Escrevo-lhe por dois motivos: primeiro, para avisá-lo que você esqueceu a sua caneta na ilha e, segundo, que não poderei recebê-lo conforme combinamos. Motivo: aluguei a ilha a fim de conseguir dinheiro para terminar as obras já iniciadas. Quanto ao incorporador, você poderá mandar me escrever, caso ele se interesse, pois o meu advogado, quando fez o contrato de locação, fez uma ressalva nesse sentido. Mas ficou muita bonita a obra; já está prontinha: o terraço ficou lindo, assim como os dois banheiros: homens e senhoras.
 

Lamento muito sua ausência, pois você é uma pessoa alegre e adora o Nudismo. Mas o que fazer? A necessidade é a maior inimiga do ideal, não acha? Bem, caríssimo amigo, escreva-me sobre as ostras, sua vida, enfim, não me esqueça.
 

Um abraço da Luz.”
 

Img: Pedro Ribeiro

Sérgio de Oliveira e Paulo Pereira

Essa carta é um pequeno documento da saga naturista do Brasil, iniciada em 1949, efetivamente. O texto, que fala em “amigo da natureza”, é parte de um texto bem mais amplo, datado de 05/05/1994, texto esse enviado pelo amigo naturista Luciano Canabrava ao amigo Sérgio Oliveira, sob o título de “Depoimento Sobre Luz del Fuego”, texto esse publicado pela Rio-Nat, na íntegra. Devemos sempre prestigiar os fatos históricos inteiros, o que enriquece o Naturismo Brasileiro.
 

O Jornal “O Globo” também publicou, no “Segundo Caderno”, 15/12/2018, uma extensa matéria sobre o uso e o abuso das palavras, sob os títulos de “O Ano Se Conta Em Palavras” e “As Palavras e as Coisas”... As palavras referidas anteriormente “amigo” e “natureza” exigem nossa melhor percepção, mais do que nunca, até porque a cansativa pós-verdade insiste em traduzir-se por palavras dúbias. O artigo de “O Globo” ressalta que “além do “Zeitgeist”, que faz cada ano poder ter um termo para chamar de seu, é preciso prestar atenção às camadas de sentido que as palavras ganham com o tempo”... Será que “amigo” virou “inimigo”, e que “natureza” virou “armação”, e que “naturismo” virou “ficção pudica”?... Certamente ainda não, felizmente.
 

Quando focalizo a expressão “amigo da natureza”, dirijo meu pensamento respeitoso a inúmeros companheiros e companheiras naturistas com quem tenho tido (ou tive) o privilégio de conviver. Faço aqui uma saudação especial para: Luz del Fuego, pioneira maior do Naturismo Brasileiro, atriz consagrada, feminista afirmada, naturista e mulher de coragem, autora do primeiro livro naturista do Brasil, intitulado “A Verdade Nua”, 1950, além de “Trágico Blackout”, fundadora do Clube Naturalista Brasileiro (Ilha do Sol) e da revista “Naturalismo”, 1950, a famosa “bailarina do povo”, irmã querida e saudosa, libertária; Daniel de Brito, radioamador, tradutor, fundador da FNIB – Fraternidade Naturista Internacional do Brasil (1960), delegado do Brasil ao Congresso Internacional de Naturismo realizado em Koversada, 1972, juntamente com o amigo comum Hans Frillman, morador da cidade de Colônia, Alemanha; Osmar Paranhos, general do exército, naturista apaixonado, poeta, frequentador da icônica Ile du Levant, amigo pessoal de Luz del Fuego, ilustre e culto militante naturista; Jiri Glass, membro tradicional da AANR – American Association for Nude Recreation, vice-presidente da Rio-Nat (anos 1990), cidadão do mundo; Tácito Antônio Heit, advogado, idealista, Secretário da ANB (1969), organizador e redator dos Estatutos da ANB, registrados na INF; Terson Santos, jornalista, amigo de Luz del Fuego, frequentador da Ilha do Sol, uma camarada sereno, combativo, corajoso; Raul Renato C. Mello Neto, advogado brilhante, apaixonado pela Praia da Reserva e pelos irmãos índios; Sérgio K. Oliveira, engenheiro militar, construtor de amizades, fundador e presidente da Rio-Nat, editor da revista “Rio-É”; Antônio Cândido F. da Silveira, o Tunuca, uma grande saudade, amigo confidente, museólogo, cidadão do mundo, amigo fiel dos irmãos índios; Pedro Ricardo A. Ribeiro, professor, naturista de sempre, determinado, criador e editor do “Jornal Olho Nu” na Internet, atual presidente da FBrN – Federação Brasileira de Naturismo, líder da Praia do Abricó, amigo confidente de longa data; Celso Rossi, naturista dinâmico e criativo, articulador e incentivador da A.A.P.P. – Associação dos Amigos da Praia do Pinho, fundador da FBrN, sucessora histórica da ANB (1969), autor do livro “Naturismo, A Redescoberta do Homem”, iniciador da terceira etapa do Naturismo Brasileiro, após o término da ditadura militar de 1964, e em seguida, das famosas reportagens de Tarlis Batista sobre a Praia do Pinho, publicadas nas revistas “Manchete” e “Ele e Ela”; Marcelo e Carina, casal naturista afirmado, fundadores e editores da revista “Brasil Naturista, cidadãos do mundo, criativos; Augusto Carneiro, idealista, colecionador histórico de textos relativos ao meio ambiente e ao naturismo; Maria Luzia Almeida, professora, primeira mulher presidente da FBrN; João Olavo Rosés, gestor competente, naturista estudioso, diplomata entre amigos, presidente por dois períodos da FBrN; Jorge Bandeira, historiador, dramaturgo, erudito, tradutor, irmão-índio amazônico, autor de “Luz del Fuego, Pioneira do Naturismo do Brasil”, apaixonado pelos textos de William Blake, autor de um excelente índice de termos ligados ao naturismo; Evandro Telles, amigo confidente, autor de dezenas de excelentes textos naturistas, como “A Verdade Que As Roupas Escondem”, uma grande liderança capixaba; Edson Medeiros, sociólogo, idealista, autor de “Naturismo e Novas Vivências”, um texto superlativo; Elias Pereira, gestor competente, naturista criativo, atuante, diretor do maior espaço naturista do Brasil, em Goiás.
 

Os amigos da natureza, naturistas de sempre, nos lembram que o nosso mantra do dia a dia deve ser a grande historicidade, a verdade afirmada dos fatos, jamais a mera versão interessada, distorcida. O naturismo é, em síntese e essência, a natural nudez codificada, social, essência doutrinária do nudismo naturismo, que não pode admitir releituras delirantes.
 

A mediocridade reinante e o analfabetismo conceitual dificultam, ou impedem, a correta percepção da historicidade, das etapas históricas do Naturismo Brasileiro, que se sucedem rigorosamente num processo integrado. As diversas etapas do Naturismo Brasileiro, vivenciadas de forma pioneira pelos amigos da natureza citados, constituem uma só configuração histórica, contextualizada, uma sequência evidente e anotada, que deve ser sempre prestigiada.
 

São muitos, felizmente, os sinceros amigos da natureza, homens e mulheres que tem sabido viver naturalmente, uma esperança viva de dias melhores, longe de polêmicas vazias. No início de um novo ano, de uma nova jornada, façamos a boa reflexão com espírito cidadão, desarmado.

 

Paulo Pereira é biólogo, naturista fundador da ANB (Associação naturista do Brasil), jornalista e escritor, estudioso do Naturismo.

 

(enviado em 28/12/18)


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