João Ramalho, o primeiro nudista do Brasil
por Arthur Virmond
de Lacerda Neto*
João Ramalho é figura
incontornável da então vila, depois cidade, de São Paulo, no século
16: foi o primeiro branco que habitou Piratininga e evitou o
morticínio dos integrantes da expedição de Martim Afonso de Sousa
(em 1532) e dos habitantes de São Paulo (em 1562). Era nudista, bem
como os seus filhos: vivia em clima quente, em meio a índios nus,
cujas nudezes (própria e deles) não lhe suscitou o pejo que os
jesuítas esforçavam-se por lhes incutir.
A distinção entre os
estados de nudez e vestido faltava aos índios, que somente conheciam
o primeiro, porém era percebido por João Ramalho, originário de
civilização vestida, malgrado o que, adotou a nudez, fosse porque se
integrasse aos costumes silvícolas, fosse por ausência de indumentos
disponíveis, fosse por ausência de pejo; provavelmente, pelos três
motivos, combinadamente.
Enquanto a nudez dos autóctones correspondia-lhes ao modo
tradicional de viver, o nudismo de João Ramalho derivou do deles e
contrariava, em alguma medida, o etos cristão e a prática dos seus
patrícios portugueses e dos europeus.
Enquanto os autóctones
eram naturalmente nudistas, Ramalho o foi circunstancialmente,
quando seria de esperar que, como cristão, se pejasse da vida em
nudez e encobrisse pelo menos a genitália: não o fez. Foi o primeiro
nudista brasileiro: originário de meio têxtil (português que era) e
a ele coextensivo (quando os seus compatriotas instalaram-se no
litoral de São Paulo e, a seguir, em Piratininga), adotou a forma de
viver de comunidade nudista (a indígena). Eis porque julgo legítimo
considerá-lo patrono (branco) do nudismo brasileiro, bem assim aos
indígenas, em geral: antes de advirem os portugueses, já os
silvícolas nus habitavam o Brasil. O primeiro nudista brasileiro foi
o primeiro indígena do Brasil, figura hipotética e inidentificável;
o primeiro nudista branco do Brasil foi João Ramalho.
João Ramalho era filho
de João Velho Maldonado e de Catarina Afonso de Valbode; nasceu em
Vouzela, distrito de Viseu, em Portugal, provavelmente na quinta de
Valgode (então pertença dos Malafaias). Moço, desposou a portuguesa
Catarina Fernandes das Vacas, que não o acompanhou na sua
trasladação ao Brasil e de quem não mais houve notícias. Assim o
declara o próprio, no seu testamento, que celebrou em 1580.
Ignora-se quando e por
que João Ramalho emigrou para o Brasil; as fontes variam em
atribuir-lhe diversos anos, como sendo o da sua chegada, no
intervalo de 1501 a 1531. Certo é que emigrou antes de 1532, quando
Martim Afonso de Sousa encontrou-o em S. Vicente. Havia, então, lá,
inúmeros portugueses, bem como em Cananéia, Santa Catarina e até
mais ao sul , porém era ele, em 1553, o mais antigo branco serra
acima (no planalto de São Paulo), como o adjetivou, por duas vezes,
o padre Manoel da Nóbrega, em missivas.
Entre 1500 e 1530,
sucederam-se trinta expedições portuguesas ao Brasil, com exploração
da costa, construção de fortins, estabelecimento de feitorias; era
comuníssimo o comércio com o gentio da terra, efeito para que se
criaram várias feitorias, com presença de portugueses, de que também
os havia como prisioneiros dos íncolas, agentes compradores,
degredados, desertores dos navios, náufragos, tripulantes que se
quedavam em terra: de algum destes tipos de situação resultou a
radicação de João Ramalho no Brasil, não preferentemente por
naufrágio nem degredo; possivelmente por mercancia.
Ramalho denunciou ao
superior dos jesuítas os padres que infringiam o voto de castidade,
o que levou Manoel da Nóbrega a providenciar em relação a eles. De
então por diante, este passou a simpatizar com Ramalho e vice-versa.
A excomunhão foi-lhe levantada antes de 1562.
Em 1532 aportou em
Bertioga a frota de Martim Afonso de Sousa (chefe de expedição
colonizadora e donatário da capitania de São Vicente em 1534), o que
perceberam alguns silvícolas, que disto informaram os seus caciques,
dentre quem Tibiriçá, que se determinou a atacá-la e que participou
a sua decisão a João Ramalho que, por sua vez, intuiu tratar-se de
portugueses, dissuadiu-o e persuadiu-o da conveniência de bem
recebê-los. Suplicou-lhe permissão para ir defendê-los, com parte
dos seus subordinados, ao que Tibiriçá anuiu: à frente de 500
sagitários, Ramalho demandou Bertioga, pressurosamente, para lá
chegar antes dos índios adversos aos ádvenas que, por sua vez,
avistaram-nos e aprestaram-se para o confronto.
João Ramalho
aproximou-se do forte então construído pelos portugueses, a quem
falou em voz alta, para espanto deles: consultaram-se
reciprocamente, por mútuas indagações; Ramalho apresentou-se a
Martim Afonso, a quem assegurou que viera para defendê-lo,
coadjuvado pelos indígenas que o acolitavam. Coligaram-se.
Ao testemunharam os
bons termos em que estavam portugueses e Tibiriçá, os demais íncolas
também contraíram amizade com eles.
Foi decisivo o papel
de João Ramalho: assegurou a sobrevivência dos expedicionários, a
segurança da expedição colonizadora e a amizade dos indígenas para
com os adventícios. Sem a sua intervenção, os portugueses teriam
sido exterminados e não haveria principiado o desenvolvimento
paulista, tal como se iniciou, naquele momento e com paz entre
ádvenas e autóctones.
Constou a Martim
Afonso que no alto da serra de Paranapiacaba haveria ouro e prata,
pelo que Ramalho guiou-o através de trilha dos tupiniquins: rumaram
em barcos a remo, de São Vicente até Piaçagüera de Baixo (atual
Cubatão); prosseguiram por terras alagadas até Piaçagüera de Cima,
de onde empreenderam a ascenção da Serra de Paranapiacaba. Ao
atingirem a nascente do rio Tamanduateí, seguiram-lhe o curso,
retiraram-se da mata fechada e adentraram vasto campo desarborizado.
Ainda ao longo do rio, alcançaram os campos de Piratininga, onde
Ramalho era o único branco e onde, posteriormente, fundou-se a vila,
depois cidade, de São Paulo.
Martim Afonso
incrementou o povoamento da marinha, mediante a concessão de
sesmarias (de que doou uma a João Ramalho, na ilha de Guaibe, em
1531), e proibiu a entrada de colonos no sertão, o que, todavia, se inobservou: muitos migravam do litoral para o planalto, onde se
fixaram, junto de Ramalho. Porque os tamoios atacassem os
estabelecimentos portugueses na marinha, Martim Afonso ordenou que
todos se congregassem no litoral, como providência de fortalecimento
da defesa local, efeito para que se marcou prazo, maior no caso de
Ramalho, por estar distante. Ele, contudo, desobedeceu à ordem.
Martim Afonso de Sousa
atinou na condição de chefe, de Ramalho, na região do planalto
paulista. Desde 1517, ele aprisionava os índios inimigos dos
tupiniquins e os vendia como escravos para os portugueses,
juntamente com Antonio Rodrigues , também português, que se
estabeleceu em S.Vicente nos anos de 1520.
No planalto paulista
aparentemente João Ramalho não residia na vila de Santo André nem na
de São Paulo, e sim em Jaguaporecuba, próximo de Ururaí, com a sua
numerosa descendência. Terá, contudo, habitado em Santo André ao
tempo em que lá exerceu como vereador.
Pedro Taques de
Almeida Paes Leme credita a João Ramalho a fundação da vila de Santo
André e a construção de trincheira que a circundava e de quatro
baluartes, cavalgados de artilharia, que a defendesse dos indígenas
hostis: constituíra-se povoado composto pela gente de João Ramalho,
a saber: os seus filhos e índios (escravos ou agregados). Porque
aumentasse, Tomé de Sousa determinou, em 1553, a sua elevação a
vila, com nome de Santo André, contanto que, previamente, fosse
fortificada com a construção de trincheira e de quatro baluartes
suscetíveis de receberem artilharia. Ainda consoante Pedro Taques,
Ramalho promoveu-lhes, à sua custa, a construção, bem assim de
igreja, cadeia e mais obras públicas necessárias. A seguir, Antonio
de Oliveira (loco-tenente de Martim Afonso) ergueu-lhe pelourinho
(aos 8 de abril de 1553), em nome do donatário Martim Afonso, e
atribuiu ao povoado o nome de Vila de Santo André, de que se
investiu Ramalho (já então guarda-mor do campo, com autoridade em
todo o planalto de São Paulo) no lugar de alcaide-mor. Lá, Ramalho
exerceu, também, os lugares de vereador (em 1557 e 1558). Teodoro
Sampaio desmente Pedro Taques : nega Santo André ter tido, em
momento algum, trincheira, baluartes, igreja, cadeia. Pedro Taques
disse com base nos termos de vereanças de Santo André, de 1553, que
desapareceram e a que, de conseguinte, Sampaio não acedeu:
ser-lhe-ia indispensável consultá-los para, fundado em fontes
primárias, desmentir Pedro Taques. Pondera Sampaio que a alegada
igreja teria sido simples capela ou ermida; que a alegada cadeia não
passaria de tronco em alguma palhoça e que mais não havia de sólido.
São ponderações arrazoadas. Também nega a fundação de Santo André
por iniciativa de Ramalho, que atribui à do padre Leonardo Nunes.
Elucida: Cabe, sim, a João Ramalho a precedência no movimento
povoador, não porém a iniciativa da fundação do primeiro povoado
[...] (a saber: Santo André).
Em 1560, Santo André
foi extinta, por determinação de Mem de Sá (terceiro
governador-geral do Brasil), ao ordenar a reunião das suas
população, câmara e pelourinho, à vila de São Paulo. Ramalho, que
era vereador em Santo André, passou a sê-lo em São Paulo.
Na posse da sesmaria
doada por Martim Afonso a Pero de Góis, em 1534, Ramalho e Antonio
Rodrigues constam como línguas desta terra, ou seja, intérpretes do
português para o tupi e vice-versa.
Ramalho e Rodrigues
foram dos mais antigos povoadores portugueses do Brasil. Enquanto
este residia em Tumiaru (na marinha) e amasiara-se com a filha do
régulo Piquerobi, aquele era (até, pelo menos, 1532) o único branco
residente em Piratininga , onde se amancebara com Bartira (filha do
régulo Tibiriçá), com quem deixou geração.
Bartira foi batizada
pelo padre Manoel da Nóbrega; por ocasião do batizado, ela tomou o
nome de Isabel Dias. Provavelmente não desposou Ramalho porquanto
este, no seu testamento, refere-se-lhe como sua criada e não como
mulher.
Consoante o uso dos
silvícolas, Ramalho tinha outras amásias, irmãs de Bartira. O sogro
de Ramalho, cacique Tibiriçá, também recebeu o batismo e passou a
nomear-se de Martim Afonso Tibiriçá, em homenagem a Martim Afonso de
Sousa.
Por ocasião das
investidas dos franceses na Guanabara, Ramalho foi investido, por
decisão popular, como capitão-mor da praça, para defendê-la dos
índios tamoios.
Em 1553, o alemão
Ulderico Schmidel esteve em Santo André, onde se desencontrou de
Ramalho, pelo que o não conheceu. Considerou-o potentado, até mais
poderoso do que o próprio rei: Havia guerreado e pacificado a
província reunindo 5000 índios enquanto o rei de Portugal só
ajuntaria 2000. No seu livro Viagem ao rio do Prata, atribui a
Ramalho a pretensão de governar os portugueses locais, por haver
conquistado o país, após haver combatido por quarenta anos nas
Índias. São declarações fantasiosas.
De começo, os jesuítas
antagonizaram com João Ramalho; contudo perceberam que ele
ser-lhes-ia valioso na catequização dos indígenas. Foi excomungado
porque se recusasse a confessar , motivo porque, certa feita, o
padre Leonardo Nunes expulsou-o da capela de Santo André, quando
tencionava lá assistir à missa, ou foi excomungado (também ?) por
mancebia, em 1549.
Era parente do jesuíta
Manoel de Paiva, a quem conheceu no Brasil e que chegou ao Brasil
(na Bahia) em 1550; três anos depois, deslocou-se para São Vicente.
Em duas cartas ao seu
superior em Lisboa (o padre Luis Gonçalves da Câmara), o jesuíta
Manoel da Nóbrega referiu-se a João Ramalho. Na primeira (datada de
15 de junho de 1553) redigiu: nesta terra está um João Ramalho. É
muito antigo nela e toda a sua vida e a de seus filhos é conforme a
dos índios e é uma petra scandali para nós porque a sua vida é o
principal estorvo para com a gentilidade, que temos, por ser ele
muito conhecido e aparentado com os índios. Tem muitas mulheres. Ele
e seus filhos andam com irmãs e tem filhos delas, tanto o pai como
os filhos. Vão à guerra com os índios e as suas festas são de índios
e assim vivem andando nus como os mesmos índios. Por todas as
maneiras temos provado e nada aproveita e até já o deixamos de lado.
Este, estando excomungado, por não querer confessar [...].
(Grifei.).
"Vivem andando nus,
como os mesmos índios": Manoel da Nóbrega, testemunho presencial dos
costumes de Ramalho, no-lo dá como nudista.
Na segunda, de 31 de
agosto do mesmo ano, muda de tom e de conceitos, empós o haver
conhecido, serra acima: nesse campo está um João Ramalho, o mais
antigo homem que nesta terra está. Tem muitos filhos e muito
aparentados com todo este sertão. E o mais velho deles levo agora
comigo ao sertão por mais autorizar o nosso ministério. João Ramalho
é muito conhecido e venerado entre os gentios e tem filhas casadas
com os principais desta terra. De maneira que nele, e nela e em seus
filhos esperamos ter grandes meios para conversão destes gentios.
Esse homem, para mais ajuda, é parente do Pe. Paiva, cá se
conheceram. Quando veio da terra, que havia quarenta anos e mais,
deixou a sua mulher lá, viva, e nunca mais soube dela, mas que lhe
parece que deve ser morta, pois já vão tantos anos. Deseja muito
casar com a mãe destes seus filhos. Já para lá se escreveu e não
veio resposta deste seu negócio. Portanto, é necessário que V. Rma.
envie logo a Vouzela, terra do Pe. Mestre Simão, e da parte de Nosso
Senhor lhe requeiro; porque se este homem estiver em estado de
graça, fará Nosso Senhor por ele muito nesta terra. Pois estando em
pecado mortal, por sua causa e sustentou (sic) até agora. E, pois,
isto é cousa de tanta importância, mande V. Rma. logo a saber a esta
informação de tudo isto o que tenho dito.
Aparentemente, a
mulher de João Ramalho vivia em 1553 e obteve-se indulto canônico
para os amancebados (como lhe era o caso), a instância de Nóbrega ,
por pedido de quem João Ramalho mandou um de seus filhos, André,
acompanhar Nóbrega em expedição pelo interior da capitania à procura
de íncolas que cristianizar, como forma de conferir mais autoridade
à catequese, como se apura da segunda carta transcrita.
Malgrado a
incorporação da vila de Santo André na de São Paulo, os tamoios
aliaram-se (em 1562) aos guaianases, aos tupis e aos carijós e
acometeram São Paulo. Segundo relato do padre José de Anchieta,
surgiram pela manhã, “pintados, emplumados e com grande alarido”. O
conflito durou dois dias, em que os inimigos aproximaram-se até a
horta dos jesuítas. Ramalho foi nomeado capitão da gente, para
chefiar a resistência, efeito para que, em 24 de junho de 1562, os
oficiais da câmara de São Paulo tomaram-lhe juramento, de bem e
verdadeiramente servir o cargo de capitão, para cujo exercício
investiram-no de "amplos poderes [...] determinando que todas as
pessoas lhe obedecessem em tudo que fosse necessário para essa
guerra, sob pena de prisão, de multa de vinte cruzados [...] e de
degredo para Bertioga [...]".
Foi-lhe exitoso o
comando, graças a que se salvou a incipiente vila de São Paulo que,
assim, persistiu. Sem a ação avisada e oportuna de Ramalho (já pela
segunda vez), ela teria sido provavelmente destruída, os seus
habitantes mortos ou dispersados e outro ter-lhe-ia sido o destino:
cessar-lhe-ia a existência, de todo, ou interromper-se-ia por algum
lapso, até que se congregasse gente bastante para impor-se aos
silvícolas.
A cidade de São Paulo
deve a João Ramalho a perduração do seu núcleo populacional primevo.
Graças a haver tido prole, com várias índias, e a haver se entrosado
com os íncolas, desempenhou papel insubstituível na interação entre
eles e os portugueses, de que estes teriam sido exterminados pelos
indígenas a eles hostis, sem a defesa que lhes propiciaram Ramalho e
os indígenas em quem exercia preponderância, notadamente Tibiriçá,
seu sogro. A sua decisão de defender os colonos e a sua posição de
capitão da guerra foram determinantes para que Tibiriçá o
coadjuvasse. Ramalho exerceu influência em sua numerosa descendência
mestiça, aparentada, por isto, com os principais elementos da
população local, o que lhe granjeou alto conceito, da parte da
maioria dos moradores.
Poucos meses após, em
25 de dezembro de 1562, Tibiriçá sucumbiu à peste. Em reconhecimento
pela sua bravura e pela sua condição de prócer de São Paulo, foi
tumulado na cripta da igreja da sé daquela capital.
Dois anos depois, foi
Ramalho novamente eleito como vereador, do que declinou, em 15 de
fevereiro de 1564 (em vereança), com as alegações de exceder, já, os
70 anos de idade e de estar satisfeito com a vida que levava.
Incorporados, os oficiais da câmara dirigiram-se à casa de Luis
Martins, onde ele se achava pousado e onde insistiram para que
acedesse ao cargo, inutilmente. Regressou, a seguir, para o vale do
Paraíba, onde morreu em 1580 ou 1582.
Conjecturou-se,
controvertidamente, que João Ramalho fosse judeu: os analfabetos
(era-lhe o caso) assinavam de cruz: alguém lhes redigia o nome e o
próprio desenhava uma cruz entre os seus prenome e sobrenome. Os
seus dezenove autógrafos conhecidos contêm sinal na forma de letra
"C" invertida, que corresponderia à letra caf, do alfabeto hebraico,
em lugar da cruz. Fosse judeu e não seria analfabeto nem teria
jurado pelos evangelhos, como fez ao ser investido em cargos
públicos.
A relação dos padres
com João Ramalho foi conflituosa: eles o enxergavam como bruto que
andava nu, era polígamo e transgredia os mandamentos cristãos,
conforme se lê em suas cartas. Por outro lado, apoiavam-se nele, e
sem ele, e sem Tibiriçá, o seu esforço catequizador teria malogrado.
Tibiriçá, supostamente chefe de aldeia estabelecida onde existe o
Largo de São Bento (na cidade de São Paulo), arregimentou os índios
que ali se estabeleceram e foram cristianizados pelos jesuítas.
Nas suas Memórias
para a História da Capitania de São Vicente, frei Gaspar da
Madre de Deus declara haver lido um traslado do testamento de João
Ramalho, cujo original fora redigido na vila de São Paulo, em 3 de
maio de 1580, pelo tabelião Lourenço Vaz e subscrito pelo juiz
ordinário Pedro Dias e por cinco testigos. Nele o testador assere,
por duas vezes, contar mais de 90 anos de assistência nesta terra,
ou seja, residir no Brasil desde data anterior à de 1490, sem que
alguns dos circunstantes lhe advertisse que se enganava, o que
certamente fariam se o velho por caduco errasse a conta porque bem
sabiam todos que, em 1580, ainda não chegava a 50 a assistência dos
portugueses na Capitania de S. Vicente.
O testamento, em
original, existe.
Frei Gaspar prossegue:
Depois de habitar neste continente o dito Ramalho casualmente
descobriu Pedro Cabral o Brasil, em 1500 [...], com o que
explicita a prioridade do primeiro em relação ao segundo, no Brasil.
Em livro de vereanças
de São Paulo, em data de 15 de fevereiro de 1564, Ramalho afirma
não poder aceitar o cargo de vereador, para que fora eleito por ser
homem velho que passava de 70 anos, pelo que teria nascido antes
de 1494, o que, combinado com a declaração anterior, resulta em que
teria emigrado para o Brasil infante.
Contudo, um sobrinho
(não identificado) de João Teixeira de Carvalho extratou informações
do original, em que leu 70 e não 90, o que remete a vinda de Ramalho
para 1510. Ao mesmo tempo, uma carta de sesmaria concedida, em 1532,
a Pero de Góes, declara achar-se Ramalho no Brasil desde 1517; carta
autógrafa de Manoel da Nóbrega, em 1553, comunica haver João Ramalho
emigrado cerca de quarenta anos antes, ou seja, em torno de 1513. A
leitura do sobrinho de João de Carvalho, a carta fundiária e missiva
de Nóbrega infirmam a vinda pré-cabralina do testador que, no
entanto, seria perfeitamente admissível, sem tais objeções, à luz
dos numerosos indícios de que o Brasil era conhecido pelos
portugueses desde antes de 1500.
Morreu em 1582, em
sítio ignoto, em pleno sertão, anoso de cento e pico anos,
possivelmente cento e doze.
De João Ramalho, Tomé
de Sousa transmitiu a el-rei, em missiva de primeiro de junho de
1553: fiz Capitão dela [da vila de Santo André] a João
Ramalho, natural do termo de Coimbra, que Martim Afonso já achou
nesta terra quando cá veio. Tem tantos filhos, netos, bisnetos e
descendentes dele, q. não ouso de dizer a V.A. não tem cã na cabeça,
nem no rosto, e anda nove léguas a pé, antes de jantar [...].
Da higidez e vigor de
Ramalho, declarou o jesuíta Baltasar Fernandes, em missiva de 1568:
Um homem branco que há 60 anos que está nesta terra entre este
gentio, que agora é de quase 100 anos [...]. É passo que, aliás,
permite quatro ilações:
I) a de que Ramalho
chegara ao Brasil em 1508, porque 1568 - 60 = 1508.
II) a de que em 1508
tinha, de idade, pouco mais ou menos 40 anos, pois em 1568 contava
quase um século; chegara há sessenta anos. Ora: 100 - 60 = 40.
III) a de que nasceu
pouco após 1468, haja vista que em 1568 era quase centenário: 1568 -
100 = 1468.
IV) a de que, em 1500,
contaria aproximadamente 32 anos, dado que 1500 - 1468 = 32.
Em 1580, era em que
exarou testamento, vivia, já, cerca de 112 anos ; em 1584 já
falecera.
Prossegue o missivista
que Ramalho sofrera acidente, pelo que o procuraram dois padres, que
lhe tomaram confissão e lhe propinaram a comunhão, prova, aliás, da
sua cristandade, que infirma a sua pretendida condição de judeu.
Washington Luis julga-o, com visão de conjunto:
"Foi, não há dúvida
alguma, homem de grande poder de vontade, de suma energia, de muita
habilidade; porque um dos primeiros, sendo talvez o primeiro, a
chegar a S. Vicente, pode se impor a selvagens broncos e cruéis,
dominá-los a ponto de poder dispor de milhares de arcos, ser por
eles "venerado, formar um lar, numa terra em que os que vieram
depois, e sendo prinicpais da capitania, nele constituiram família.
Exerceu todos os primeiros cargos locais da colônia, recebeu das
altas autoridades civis da costa do Brasil provas inequívocas de
confiança e distinção, e foi julgado pela mais alta autoridade
religiosa dessa mesma costa, necessário para o melhor êxito da
catequese .
[...]
Teve naturalmente
muito defeitos, mas também teve as qualidades varonis dos
portugueses de sua condição, que naquele tempo viveram. Era de trato
difícil, gostava de mandar e estava acostumado a ser obedecico.
Grosseiro e tenaz.
Cometeu os pecados que
naquela época a religião católica considerava gravíssimos, e alguns
ainda hoje o são, "a falta de confissão", "não ouvia missa",
"amancebou-se na terra", fez as guerras de sua gente contra as
tribos inimigas, e, com viver solto e independente, viveu a vida de
selvagem, onde só selvagens viviam, alimentando-se de caça e de
pesca, de mel e de frutas, sem comércio cristão [...].
Foi, porém uma das
mais curiosas figuras, talvez a mais curiosa figura da costa do
Brasil, nos seus primeiros tempos."
Prócer na capitania de
São Vicente e, de conseqüência, no Brasil então incipiente, foi
cognominado de Patriarca dos Bandeirantes e Patriarca do Campo (por
haver fundado Santo André).
No final dos 1900 e
princípios do século seguinte, integrantes do Instituto Histórico e
Geográfico de São Paulo determinaram-se a elucidar melhor a figura
de João Ramalho. Pesquisas levadas a cabo em Portugal
desmentiram-lhe a condição nobre; do exame das suas assinaturas, nas
atas da vila de Santo André, concluiu-se haverem sido escritas por
diferentes pessoas, o que lhe revela a condição, trivial, no século
16 e nos seguintes, de alfabeto.
Na altura, a cidade de
São Paulo estava em crescimento econômico acentuado, graças ao café.
Com a aproximação das comemorações do Quarto Centenário do
Descobrimento do Brasil, em 1900, os intelectuais paulistas
procuraram personagem que lhes simbolizasse o Estado, papel em que
não quadrava Pedro Álvares Cabral (em outros Estados considerado o
grande personagem do Descobrimento) porque não lá esteve. João
Ramalho poderia encarnar tal figura, contra quem depunha certa má
fama, difundida pelos jesuítas seus coevos, o que suscitou pesquisas
que ensejaram percepção de imagem do conjunto da vida conhecida de
João Ramalho, apesar da escassez das fontes. Em 1927, os vereadores
de São Paulo homenagearam-no e Bartira, com a atribuição dos seus
nomes a duas ruas no bairro Perdizes. Dele descendem incontáveis
paulistas e brasileiros quinhentões.
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