Paulo Pereira é um dos mais intensos colaboradores do jornal OLHO NU nestes 20 anos de existência. Com dezenas de artigos publicados, desde a primeira edição, que sempre trazem fatos históricos e relevantes do Naturismo sob a égide da reflexão e do bom senso. Paulo sempre trouxe sua opinião pessoal bem fundamentada e embasada nos seus mais profundos estudos do Naturismo mundial e com a sabedoria da profunda experiência dos mais de sessenta anos vivenciado e participado nessa filosofia. Nesta edição conta um pouco de sua história de forma serena e incisiva, características que sempre foram de seu estilo, relembrando fatos de sua vida que se misturam com a própria história do Naturismo. 

Vivendo Naturalmente

- um testemunho -

Por Paulo Pereira*

Img: Pedro Ribeiro

Paulo Pereira, estudioso do naturismo, entre outras características, é colaborador do Jornal OLHO NU desde a primeira edição.

Dizem que a vida é feita de escolhas, mas a verdade é que as vozes naturais, desde cedo, impuseram-se a mim de forma sutil, irresistível. Tornei-me, apaixonado, um grande amigo da natureza soberana, certamente dos animais e das plantas, que conheci, desde a primeira infância, no imenso quintal do casarão da Tijuca, onde vivi meus primeiros quatorze anos, uma referência indelével, preciosa, que me orienta permanentemente. A consciência de ser parte integrante, viva, da mãe-natureza é um dado fundamental, que se constitui como base sólida para minhas buscas e experiências.

O prezado amigo, irmão amazônico Jorge Bandeira, ao analisar, generoso, o texto do meu livro “Corpos Nus”, 2006, afirmou que sou um autêntico “Ara Watasara”, um andarilho do tempo, e realmente tenho percorrido muitos caminhos ao longo dos anos, um grande esforço para romper velhas amarras, para afastar obstáculos nebulosos, uma tentativa consciente de alcançar a luz da sabedoria, de fato uma peregrinação despojada, que desafia muitas decepções, sofrimentos e violências. Mas o encontro sublime com a “luz do fogo da verdade natural”, como disse Bandeira, tem justificado plenamente todos os sacrifícios.

Img: Arquivo pessoal

Jorge Bandeira, ator, historiador, defensor das causas indígenas também é um expoente do Naturismo moderno.

Tive o privilégio de ser devidamente alfabetizado logo aos sete anos de idade, e de poder ler, fascinado, a inquietante história do aventureiro alemão Hans Staden, em sua viagem ao Brasil em pleno século XVI, numa versão criativa e talentosa de Monteiro Lobato, 1944, um mergulho todo meu no vasto, e misterioso, mundo selvagem dos meus irmãos índios, dos valentes Tupinambá, então chefiados pelo temido cacique Cunhambebe (Kunanbeba) da tribo dos guerreiros tamoios. Li e reli, sem qualquer enfado, a narrativa fantástica de Staden, sentindo no corpo e na alma uma energia especial, que vinha a mim para ficar, envolvente e indomável, e que persiste ainda hoje, ainda que octogenária. Percebo, pois, com nitidez, que o índio, esse homem todo natural, despido, saudável e feliz, de resto rude e verdadeiro, tem sido uma inigualável lição de vida para mim, sobretudo, um lúcido contraponto em relação à sociedade convencional, dita civilizada, na verdade desigual, hipócrita, cruel, artificial, consumista, devastadora... Tenho buscado intensamente viver como a natureza deseja, acima das dificuldade inevitáveis, ouvindo sempre os “recados das matas”, como disse Viveiros de Castro, perceptivo, ao escrever o prefácio do livro “A Queda do Céu”, do xamã Kopenawa e de Bruce Albert, uma obra inquietante, premonitória. Eu me acostumei, dia a dia, com a grande simplicidade natural; eu me acostumei a ser índio, certamente o “índio branco intelectivo”, como disseram os nobres amigos da “Brasil Naturista”... A propósito, é importante sublinhar que considero fundamental procurar desenvolver um olhar perceptivo a respeito de nossa filosofia de vida no planeta Terra. O referido xamã Kopenawa observa que “a terra ressecada ficará vazia e silenciosa; os espíritos xapiri, que descem da mata, das montanhas, para brincar nas florestas em seus espelhos, fugirão para muito longe, e não serão capazes de espantar as fumaças de epidemia que nos devoram”... Esse alerta foi escrito há um bom tempo, muito antes da chegada do trágico “covid-19”, uma reflexão inevitável. Então, anoto, de passagem, que Ecologia é ciência, disciplina ou especialidade da Biologia, e não um modismo, uma palavra banalizada na boca de idiotas.

Img: reprodução

Capa do livro de Monteiro Lobato que inspirou Paulo Pereira na infância, em edição atual.

A exemplo do que historicamente colocou o icônico cacique Seattle, no século XIX, o referido xamã Kopenawa declara objetivamente: “Na floresta, a ecologia somos nós, os humanos. Mas são também, tanto quanto os xapiri, os animais, as árvores, os rios, os peixes, o céu, a chuva, o vento e o sol! E tudo o que veio à existência na floresta, longe dos brancos, tudo o que ainda não tem cerca!”... E, como índio branco, afinal, tenho humildemente aprendido a viver valorizando todos os espaços abertos, sem muros, sem censura prévia, sem dogmas e sem castigos, uma tarefa trabalhosa, mas que compensa por promover felicidade e paz.

Em suma, os meus queridos irmãos índios tem sido minha inspiração, minha grande referência para um viver natural, e a saudosa amiga Luz del Fuego um exemplo esplêndido de compromisso com a natureza, de luta destemida pela simplicidade, a imagem da pioneira e da ativista sempre presente, encorajadora, sem falsos pudores, sem medos, sem comodismos fúteis. E, dessa forma, não foi difícil para mim, mesmo ainda na juventude, abraçar a causa nudista-naturista como filosofia de vida... Como era gostoso, por exemplo, andar descalço sentindo o chão frio e áspero do terreno do casarão, e ser envolvido pela brisa da tarde, sobretudo, inteiramente nu, os raios do sol a queimar sem doer, a comunhão serena e direta com a mãe-natureza realizada, certamente um pouco como o índio nos limites da tribo... Isso, quem sabe, é viver!

Tornei-me, desde então, um estudioso, um ativista do Movimento Nudista-Naturista, um praticante consciente, sempre buscando conhecimento, fazendo reflexões. Em 1963 e 1964, conheci as praias do Grumari e Prainha, na zono oeste do Rio de Janeiro, limpas e desertas, preservadas, a vida como a natureza quer, pedaços de um paraíso quase perdido. Comecei, então, a organizar pequenos grupos nudistas-naturistas, uma ação pioneira testemunhada, sem qualquer faz-de-conta, sem lucros financeiros, sem vícios ou desconstruções, sem medo de ser feliz, tomando por empréstimo um pouco da coragem dos guerreiros Kaiapó... Complementarmente, como assinante das renomadas revistas “Freis Leben” e “Sun and Health”, tornei-me correspondente oficial no Brasil de ambas as publicações, 1964 e 1966, como jornalista profissional, produzindo várias matérias, uma tarefa modesta, mas efetivamente histórica, inconteste, mesmo durante o regime militar com suas intolerâncias arbitrárias...

Img: reprodução

A revista "Sun and Health" foi uma das publicações com que Paulo contribuiu como jornalista.

Para mim, que conheci Luz del Fuego pessoalmente, fica a certeza de ter encontrado alguém realmente fora da jurisdição comum do mundo, uma extraordinária mulher, culta e inteligente, que ousou transgredir convenções mofadas, e perdeu a vida por isso... No seu livro notável intitulado “A Alma Imoral”, o rabino Nilton Bonder, enfatizo aqui e agora, nos fala da imprescindível imoralidade da alma sempre a possibilitar pensamentos e condutas que possam romper com a moral estabelecida, uma transgressão libertadora, evolutiva. E Luz del Fuego percebeu desde cedo, e sempre viveu essa transgressão lúcida, sem pudicícias de encomenda. Bonder, erudito, nos diz que há um olhar que desnuda, que não hesita em afirmar que existam fidelidades perversas e traições de grande lealdade... Luz del Fuego vivenciou, como poucos, esse olhar que desnuda, que se faz verdade. Sou testemunha disso, um privilégio que me reconforta, que me estimula, que me acalma. Viver naturalmente tem sido um aprendizado especial, uma percepção mais fina, objetiva, descortinando sempre novos horizontes luminosos. E Luz del Fuego, sublinho, tem sido, por sua obra e seu talento, um exemplo fértil de naturalidade plena.

Alguns desavisados inveterados dizem que não gostam de Luz del Fuego, que são naturistas mas não são nudistas jamais, concretamente elucubrando uma antinomia desarrazoada, sem qualquer respaldo histórico-filosófico, entre os termos “nudismo” e “naturismo”, um disparate interessado. Esses afoitos pudicos consideram-se acima do bem e do mal, gente boa, e os outros é que não prestam... Mas todos eles, por certo, se esquecem que também nasceram nus, que defecam e respiram como todos os seres humanos, e que terminarão seus dias na Terra num túmulo escuro, despidos até os ossos, ou as cinzas, sem pudores ridículos, sem direito à exceção, naturalmente!... Há evidentemente quem não goste de Gandhi, de Darwin, de Buda, de Jesus, de Einstein, por exemplo, mas a história não é feita de subjetividades, muito menos de cegueira intelectual, de analfabetismo conceitual. Os que não gostam da verdade nua agem como suicidas, ou inconsequentes, e merecem, sobretudo, a dura resposta silenciosa do tempo, a verdade fundamentada da história em vez de narrativas heréticas, vazias.

Img: nutels.com.br

Noel Nutels, sanitarista e indigenista, foi outra pessoa que Paulo admirou por toda sua vida

Quando a própria viabilidade existencial da humanidade mostra-se indeterminada, ameaçada, a percepção científica, efetiva, dos valores naturais é, mais do que nunca, indispensável e urgente. O afirmado Lévi-Strauss tem razão quando observa que “não são apenas os índios, mas também os brancos, que estão ameaçados pela cobiça do ouro e pelas epidemias introduzidas por estes últimos. Todos serão arrastados pela mesma catástrofe, a não ser que se compreenda que o respeito pelo outro é a condição de sobrevivência de cada um”... É chegada a hora de viver livremente, sem mitos pudicos!

Ao longo do meu caminho, muitas vezes de pedras e espinhos traiçoeiros, como andarilho do tempo realmente, muitos têm sido, felizmente, os encontros iluminados, abençoados. Quando falo de natureza, não posso esquecer a oportunidade magnífica que tive de conhecer pessoalmente o notável Noel Nutels, médico sanitarista, irmão também dos povos indígenas dessas Terras Brasis, um ser humano superlativo, que não deve ser esquecido, ex-diretor do SPI – Serviço de Proteção ao Índio. Em 1970, como jornalista e acadêmico de Biologia, visitei algumas vezes Noel Nutels em sua residência no bairro de Laranjeiras, no Rio de Janeiro, um aprendizado precioso. O exemplo rico, e inquietante, de Nutels foi, e tem sido, para mim uma referência importante de como viver naturalmente. Mas imensamente melhor do que eu, quem pode falar de Noel Nutels é o meu mestre Darcy Ribeiro, outro irmão índio: “Pensando em Noel me dou conta, outra vez, que meus amigos queridos, as pessoas a quem realmente admiro, são todos uns fracassados, fracassados como eu, entenda-se... Sem qualquer dúvida, meu companheiro Noel fracassou. E fracassou de fracassos tanto mais penosos porque, apesar de sua dramaticidade, muito poucos foram capazes de avalia-lo, ao menos para se solidarizarem com sua luta. Noel viu tribos inteiras, orgulhosas e vigorosas, saírem indefesas dos milênios em que construíram a si mesmas, como faces do humano, para serem destroçadas nas moles da civilização. Espoliadas de suas terras. Subjugadas por fazendeiros broncos. Oprimidas por funcionários incompetentes. E, sobretudo, contaminadas pelas pestes da civilização, que é o que mais doía a Noel, medico indigenista. Para um homem de sensibilidade, há poucas experiências mais dolorosas que a de ver um grupo indígena em sua vida autônoma, com seu vigor físico à mostra na dignidade de sua nudez, com sua alegria de viver, com sua sabedoria das coisas, com sua ávida curiosidade sobre o mundo, e ver depois, passados alguns anos de convívio com civilizados. Nada lhes resta do que foram”... Noel Nutels me fez ver melhor tudo isso também, falando da simplicidade eloquente dos velhos índios, indicando-me caminhos corretos para o meu viver com naturalidade sadia. Noel, como salienta Darcy, lutou bravamente contra a cobiça e a brutalidade da civilização burocrática, desumana, que idolatra o lucro de forma inescrupulosa. Noel, Darcy e Luz del Fuego, guerreiros da paz, não merecem esquecimento!

Estou convicto de que viver naturalmente exige renúncia consciente de velhos hábitos, e o culto inteligente da simplicidade, fundamentalmente uma visão iluminista, sustentada pelo conhecimento e pela razão, em vez de crendices, intolerâncias e dogmas. Especialmente quando alguns iconoclastas insones tramam desconstruções, e propagam ódios patológicos, busco refúgio nos recados das matas, nas mensagens dos xamãs icônicos e sábios, perplexo algumas vezes diante de tantas perguntas sem respostas, mas com a consciência livre de comprometimentos obscuros, ou discrepantes da natureza indomável, sempre um escutar no silêncio nobre...

Em tempo: É importante perceber, afinal, que a ciência e a tradição xamânica, por exemplo, desconsideram liminarmente a noção equivocada de “natureza-objeto”, enfatizando, sobretudo, o entendimento do natural como dado primeiro, essencial, dentro do processo da vida. Então, homem e natureza amalgamados, integrados, a parte e o todo, sem quaisquer estranhamentos subjetivos ou culturais. A natureza não deve ser vista como algo acessório, complementar, à disposição para consumo, para reciclagem, convenientemente sustentável sob gerenciamento humano como fonte produtiva. O desgastado binômio exploração-preservação, por certo, pede uma terceira via inteligente, respaldada, que consagre o verdadeiro conhecimento, a preciosa sabedoria, longe de elucubrações mercantilistas.

Img: Mosaico de M. Moreira

O Etnógrafo francês Bruce Albert é autor do livro " A queda do Céu" juntamente com Davi Kopenawa Yanomami

Quando falamos, por exemplo, de “homem natural”, torna-se imperioso procurar seu significado mais exato, mais isento, à luz da ciência, da história.

O renomado antropólogo Bruce Albert observa que frequentemente priorizamos uma ambivalência de valores, que divide a natureza entre “boa natureza civilizada” e “natureza selvagem”, quer dizer: um “cenário inerte de produção” versus “essência reencontrada da totalidade”... E Bruce Albert conclui: “É para esse teatro de sombras que os índios da Amazônia são convocados, eternamente condenados a nele encenar o papel de “homem natural”...” Em síntese, como nos diz Bruce Albert, devemos questionar esse duplo imaginário da natureza sustentado pela sociedade majoritária. A natureza não é, pois, nem isso nem aquilo, e não deve estar subjugada ou associada a ninguém. O chamado “meio ambiente” não deve ser uma simples exterioridade, pressupondo um centro definidor, a sociedade, como ressalta Albert. A natureza não deve ser marginalizada... É obra de sabedoria, de reflexão séria! Enfatizo, pois, como me ensinou um velho tuxaua, que a sabedoria não tem rosto nem nome próprio; a sabedoria é um estado de espírito... Nesse pequeno testemunho, sublinho, que ambientalismo e ecologia não são sinônimos perfeitos, por exemplo, lembro que as certezas absolutas, as generalizações apressadas e, sobretudo, as sincronicidades eventuais não são Ciência com maiúscula! O bicho homem, cruel e soberbo, fábrica de mitos, procura frequentemente coisificar a natureza indomável, mas esquece que faz parte inalienável desta mesma natureza, dessa mesma realidade fundamental cósmica, percepção que tenho prestigiado ao longo de mais de oito décadas de existência, constituindo uma luta serena e destemida pela integração plena de homem e natureza, uma comunhão certamente sem vestes, sem dogmas, sem falsos pudores, sem amarras, livre como a brisa da madrugada...

*Jornalista, escritor, biólogo, estudioso do naturismo.

ppsevenbertiewk37@gmail.com

 

(enviado em 27/08/20)


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Jornal OLHO NU - edição 238 - setembro de 2020


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