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Jornal Olho nu - edição N°39 - dezembro de 2003
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Jornal Olho nu - edição N°49 - outubro de 2004 - ANO V

KAFKA NO CAMPO DE NUDISMO  

por Jorge Bandeira* 

foto: OPPI

Franz Kafka

Entro no campo. Contemplo o mar. Vejo as pessoas. Estão nuas, risonhas, como se vissem pela primeira vez a Estrela da manhã. Sou escritor e, muito depois, na outra esquina, um advogado. Meu corpo se identifica, apesar de magro, com o dessas pessoas. Aqui eu não sou um inseto repugnante. Vejo crianças à vontade, com seus pais e outros coleguinhas. Brincam na inocência da nudez, na companhia de jovens, velhos, casais, solteiros. 

Sim, este é o paraíso da felicidade, apesar dos obstáculos no mundo que os aguarda lá fora onde, além das roupas, irão vestir seus velhos problemas. A brisa percorre meu corpo por inteiro, sinto uma fragilidade e um bem estar, por mais paradoxal que seja esta afirmação para meu ser. 

Max Brod falou-me deste lugar. Ficar nu para meus pais era um desacato terrível à moral. Vejo, neste momento mágico de minha existência, que meus progenitores estavam equivocados. A nudez, dessa forma natural, naturista, é um estado do espírito, como se uma catedral gótica, com suas luzes perpetradas através de seus vitrais, formasse fragmentos da natureza deslumbrante que cobre a Terra, e que insiste em subsistir ao avanço da urbanidade. 

Meu corpo nu visto por olhos de outros corpos sem vestes, reveste-se de uma aura incandescente, que ofusca a balança da justiça falsamente moralista. Talvez este seja o tratamento que redimirá a humanidade de seus atos cruéis. A nudez revolucionará o mundo, demonstrando ser possível uma fraternidade de iguais, isto é, de corpos diferentes, baixos e altos, magros e gordos, lutando contra os rótulos ridículos das considerações sobre vergonha desta carcaça chamada corpo humano. 

Sempre vivi como um escritor menor, sem maiores atrativos para meus escassos leitores, e agora, nu diante de toda essa gente, sinto que tenho um valor, e este valor ultrapassa meus escritos e me despe de falsos adereços, de roupas que incomodam neste verão europeu. Aprendo com estas crianças que a liberdade pode começar com um corpo nu, sem ser visto como objeto para deleite de mentes atrofiadas pelo “avanço” melancólico da civilização. 

Estar nu, agora, recompõe o que tinha perdido em meu ser, qual seja, a capacidade espetacular de absolver-me dos julgamentos de seres exógenos, de pessoas que acusam, que apontam o dedo em riste na direção de alguma liberdade. Neste espaço natural, naturista, minha nudez está livre destes acusadores atrozes. Não há condenação, estou nu e livre, com toda essa gente também nua e livre. Só uma coisa me aborrece, o fato de daqui a pouco tempo vestir-me de tristeza e sair deste éden europeu, esperar pelo mensageiro que trará minhas vestes, guardadas na entrada e de onde só minha lembrança agradável resistirá. È como se saísse de minha proteção uterina e arriscasse minha nudez nas roupas marcadas pelas feridas do tempo, tempo vestido industrialmente, com seu odor de fumaça e de moda. 

Sou Franz Kafka, agora nu e feliz, logo mais têxtil e desgarrado de meus sonho acalentadores. Distancio-me e, ao fundo desta bela paisagem do campo nudista, as nuas crianças acenam para mim, como se pressentissem que vou triste, vestido de um nada abissal. Porém, tenho meu humor, que me salva do suicídio,e aceno de volta àqueles infantes nus, fazendo de longe uma estranha mímica do homem que se despe apressadamente e sai correndo em desabalada vertigem até o último raio do horizonte. Por hoje é isso, só e tudo isso.

*Membro-fundador do Graúna-Am(Grupo Amazônico União Naturista)

jotabandeira@yahoo.com.br

Franz Kafka realmente freqüentou campos de nudismo que, na década de vinte do século passado, eram comuns na Alemanha a na Áustria, após os avanços das clínicas de helioterapia (tratamento pelos raios do Sol). Apesar deste texto ser uma ficção, é importante saber que um dos maiores escritores de todos os tempos foi um naturista, mesmo que por pouco tempo. As informações sobre Kafka e o naturismo podem ser verificadas em duas obras, que formaram o subsidio básico para o autor do conto lido: Kafka, Vida e Obra, de Leandro Konder, da editora Paz e Terra; “O Pesadelo da Razão: uma biografia de Franz Kafka”, de Ernst Pawel, da editora Imago.

Manaus, 3 de setembro de 2004.


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