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De volta ao Brasil, depois de literalmente gastar tudo o que possuía,
precisei de emprego, e fui procurá-lo na área do turismo. Por conselho
de uma amiga, procurei a Soletur, onde tive a oportunidade de realizar um
curso completo de guia turístico. Depois de um ano viajando pela América
do Sul, tornei-me guia intercontinental.
Meu
pai dizia que eu era um "Cidadão do Mundo"; já estava chegando
aos quarenta, e conhecia boa parte do planeta. Aprendera muito sobre
costumes e tradições de vários povos, de países em geral mais avançados
social e culturalmente que o nosso Brasil. Aprendi alguns dos seus idiomas
e muito de suas histórias; pude concluir que os conceitos e padrões
sociais são inerentes a cada povo, podendo diferir totalmente em grupos
sociais distintos, ou até mesmo, e muito comumente, em diferentes épocas
dentro do mesmo grupo. Imagine, por exemplo, Luz del Fuego hoje, com vinte
anos de idade, vivendo no Rio de Janeiro.
O
que um determinado grupo social, em uma determinada época, considere
corretíssimo, pode chegar a ser considerado crime por outro grupo, ou em
outra época. Temos o exemplo da inauguração simbólica da despoluição
do canal em Estocolmo; o próprio prefeito teria sido condenado por
incitar a população ao atentado ao pudor público, se fosse às margens
do Tietê, em São Paulo, segundo a legislação brasileira.
Felizes
as pessoas que não se curvam a preconceitos, que experimentam
verdadeiramente a graça de viver, agindo segundo suas próprias consciências;
como Dora e Ana Jacinta viveram. Lástima que a maior parte de nós ache
isso impossível, e morra frustrada sem nunca na verdade vivenciar suas próprias
experiências.
No
verão de 1992, assustado por alguns acontecimentos, decidi deixar o Rio.
Primeiro tive meu apartamento, na Tijuca, visitado por quatro rapazes
muito bem educados, além de delicados, que foram dar-me bom dia com
carinhosos socos, coronhadas e fios de faca na pele; antes de promoverem a
faxina, aliviando minha casa de tanta tralha desnecessária, que havia
apenas custado o suor de alguns anos de trabalho decente. E se discutem os
direitos humanos. Tudo isso com a luz do sol entrando pelas janelas, num
prédio de mais de quarenta apartamentos; sem que ninguém visse, ou mesmo
se importasse com o acontecido.
Depois
foi a vez do meu carro, roubado num assalto em Jacarepaguá das mãos de
um casal de amigos, que só não morreram por milagre, pois foram tirados
dele a tiros, que estouraram um vidro e perfuraram a carroceria.
Que
mundo é este? Porque os cariocas, abençoados e agraciados pelo cenário
natural mais lindo do mundo, povo tão alegre, hospitaleiro, trabalhador,
e de espírito gaiato por tradição, tem que "pagar este mico"?
Arrumei
as trouxas, desta vez um pouco mais do que vinte anos antes, e vim de muda
para Porto Alegre. Vim ficar junto de minha família, perto de meu pai,
cuja saúde já estava bastante debilitada; e curtir esta terra, longe de
um lugar ideal, mas onde a violência ainda engatinhava na época.
Na
verdade, chegara de viagem do exterior, e recebera a notícia de que meu
pai não estava bem; vim vê-lo, felizmente já o encontrando em franca
recuperação, mas me apaixonei pela cidade. Qualquer pessoa que
dedicar-se a visitar Porto Alegre durante os oito meses quentes, que
englobam a primavera, o verão e a maior parte do outono, se gostar de
flores, de cidade limpa e povo feliz, também vai apaixonar-se pela
qualidade de vida que ela possui.
Em
setembro, são as azaléias que enfeitam os jardins; em outubro e
novembro, é a vez dos jacarandás darem seu show, cobrindo sessenta por
cento das calçadas da cidade, com sua constante chuva de pequenas flores
lilases; então chega o verão, capitaneado pelos ipês cobertos de ouro,
e todas as demais flores, como as hortênsias dos jardins residenciais.
Para fechar a temporada, em março e abril, a cor rosa claro cobre as
gigantescas paineiras, por toda a cidade.
E
foi isso, o multicolorido verão porto-alegrense tocou meu coração de
tal forma que, um mês depois, em fevereiro, minha mudança estava
chegando.
Foi na casa de meus pais, folheando o jornal Zero Hora, que uma pequena nota, quase no rodapé de uma página, chamou
minha atenção. O título dizia: "Nudistas ganham revista
especializada". E a nota falava sobre o lançamento da revista Naturis, de circulação bimensal, que chegaria às bancas
nos próximos dias, contando tudo sobre o movimento naturista no Brasil.
Era a notícia que eu havia esperado por quase oito anos, desde a
reportagem de Tarlis Batista, na Manchete de 1984. Passei a perguntar de
banca em banca diariamente, até encontrar o número 1. Foi a melhor
surpresa de toda a minha vida naturista, desde a revista editada por Luz
del Fuego, que encontrara na casa do tio Jorge. Era melhor mesmo que ter
mergulhado nu, com o prefeito e centenas de pessoas em Estocolmo, ou que
nossa praia escondida na Rio-Santos, melhor que tudo.
Ali
estavam as fotos de duas praias oficiais de Naturismo no Brasil, Tambaba,
no estado da Paraíba, e a já falada praia do Pinho, a revista falava
ainda de um grande projeto naturista para Pedras Altas, mais ao sul, também
em Santa Catarina, e da Federação Brasileira de Naturismo, oficialmente
afiliada à INF, tendo inclusive representado o país no último congresso
internacional, na Flórida.
Era
tudo o que eu precisava saber, o sonho de Luz del Fuego ainda estava vivo,
nosso Brasil já tinha Naturismo devidamente legalizado, e conquistando
mais e mais adeptos. Pessoas evoluídas haviam rompido as barreiras dos
preconceitos e tradições religiosas, assumindo seu direito à felicidade
e à liberdade de conviver nus socialmente, expondo toda a sua pele e
genitália à helioterapia e à aeroterapia; dando início ao processo que
certamente levará o ser humano ao auto-conhecimento e à autenticidade
plenos, à identificação de nossos verdadeiros ideais.
Dois
meses depois, adquiri o número 2 da revista, e comecei a programar minha
ida ao Pinho para o verão seguinte; marquei minhas férias para
fevereiro, quase um ano depois, não muito para quem já esperara tanto.
Os meses foram passando, e nunca mais encontrei outro número da revista
nas bancas, um jornaleiro chegou a dizer-me que não estava mais sendo
editada; lastimei, mas nunca alterei meus planos.
O
verão levou o triplo do tempo normal para chegar naquele ano; no início
da primavera eu já contava os dias, e imaginava como seria no Pinho.
Desde menino, tive grande afinidade com pincéis e tintas; freqüentei
a escolinha do Instituto de Belas Artes até a adolescência e muitas
vezes executei um ou outro trabalho de arte, despretensiosamente, a título
de passatempo. Em Paris, fui convidado por uma amiga brasileira a faturar
alguns francos, posando numa escola de artes; topei, e durante três dias,
passamos quase dez horas por dia posando nus pelos estúdios da escola.
Entre uma pose e outra, descobrimos que havia um artista americano
ministrando um curso de pintura corporal para alunos da escola.
Forneciam-nos uns robes de tecido, amarrados à frente, para circularmos;
vestidos assim, tínhamos acesso a qualquer estúdio. Convenci minha amiga
Cristina, a passar nossas folgas assistindo às aulas do americano,
acabando por ela ser chamada para servir de modelo para ele. À noite,
quando ela voltava da universidade, praticava pintando-a. |
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De
volta ao Brasil, experimentei fazer alguns trabalhos, contando com paciência
e boa vontade de uma ou outra amiga voluntárias, que sempre terminavam
muito felizes com os resultados.
Há basicamente duas técnicas
diferentes de "body-painting", uma delas utiliza uma espécie de
maquiagem, o "pancake", que é muito comum em palhaços, para
apresentar-se no picadeiro; não é tóxica, e tem como grande vantagem a
durabilidade do trabalho, uma vez que não seja quebradiça, e seja
resistente ao suor do corpo.
A outra técnica, utiliza a
tinta acrílica aplicada com pincéis; é bem mais bonita, por seu brilho.
Não é tóxica, pois não reage com a pele, permitindo uma cobertura de
setenta por cento do corpo por um período de até seis horas, sem
problemas para a respiração dos poros. Esta técnica, porém, tem baixíssima
durabilidade, pois depois de seco, o acrílico torna-se quebradiço.
De qualquer forma, como a maioria dos "body-painters"
naturistas do mundo, adaptei-me melhor ao acrílico, pela terapia do toque
dos pincéis, e pelas cores mais vivas. Quanto à baixa durabilidade,
encaixa-se bem aos objetivos de uma praia de Naturismo, onde o mais
importante é expor toda a pele ao sol; por isso, terminada a pintura, ela
dura o tempo necessário para ser eternizada pela fotografia, porquanto
seja efêmera, e para desfilar a vaidade feminina enfeitada, podendo ser
removida em seguida.
Imaginei-me pintando na praia
do Pinho, como já havia visto artistas fazendo em outras partes do mundo.
Muitos perguntariam:
"Porque somente corpos femininos?" A resposta seria bastante
simples: A inspiração do artista é o gosto que ele tem pelas cores,
texturas, aparências, aromas, formas, sons, ou significados do que ele
esteja criando; o artista ama sua criação porquanto sua, fruto da própria
imaginação. Não me vejo adorando qualquer coisa sobre o corpo de um
congênere; nem encontrando inspiração alguma sobre um. Trata-se de um
ponto de vista bastante pessoal e indiscutível, que pode mesmo ser
compartilhado por muitos; assim como contestado por outros.
A psicanálise pode mesmo
explicar as contestações pelo princípio da transferência; ou seja, ao
ver-me pintando sobre um corpo feminino, alguém poderia imaginar o que
ele mesmo estaria experimentando, se estivesse no meu lugar. Só que não
é ele quem está pintando, sou eu, uma pessoa verticalmente diferente
dele próprio; totalmente imerso em meu universo de criação, sentindo
apenas o meu trabalho e o prazer que ele me dá.
Pensando assim, decidi levar
minha maleta de pintura ao Pinho, pois a pintura corporal é uma marca
registrada do Naturismo, no mundo todo e desde o início dos tempos, haja
visto os índios, que pintam o corpo para enfeitar-se para festas,
demonstrar tristeza em funerais, e agressividade nas guerras. Desfilar uma
criação artística sobre a própria pele, é certamente uma manifestação
genuinamente naturista.
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